Beck, “The
Golden Age”, in https://www.youtube.com/watch?v=Y6zAT15vaFk
Era um lugar idílico.
Todos confiavam em todos. Todos eram descomprometidos na altura de ajudar os
outros que precisassem de ajuda. O eu vinha sempre em segundo lugar. Não havia
maldade; não sabiam o que era a maldade. Desde os bancos da escola, onde só se ensinava
bondade, altruísmo, despojamento do eu, sentido comunitário da existência,
crescia em todos o manancial da sociedade sem párias.
Não havia comportamentos
desviantes. Nem crime. Era um caso de estudo: talvez fosse um gene específico,
no ADN desta gente não havia o fermento da criminalidade, não havia o trepar às
costas dos outros para se ser alguém. Ninguém gostava de notoriedade. Por causa
disso, conceberam um pacto não escrito que ditava a entrada rotativa em cena de
certos membros para tomarem a coisa pública entre mãos. Os que saíam de cena
tinham a garantia de entrarem no anonimato.
Estas gentes conviviam em
repastos periodicamente organizados na floresta. Era a sagração da harmoniosa
existência em conjunto, sem atritos, sem maus instintos, sem iniquidades. Na
ocasião, celebravam a sua especial dimensão. Cantavam e dançavam todos, comiam
sem exageros, não abusavam da bebida. À saída da celebração, recolhiam todos os
detritos para não ficarem vestígios que ultrajassem a floresta.
As famílias eram esteios
de concórdia. Havia respeito recíproco entre os mais velhos e os mais novos.
Não viam televisão para evitarem a corrupção das almas. Os jornais eram
filtrados, para os mais novos não serem educados no hedonismo contemporâneo e
os mais velhos não sucumbirem a tentações que não conheceram em idade própria.
Não havia mendigos. Isso aborrecia os habitantes daquele lugar; à falta de
mendigos, como podiam exercitar a bondade que fluía nas suas veias?
Numa assembleia cívica, um
concidadão questionou se este pesar não era reprimido egoísmo – assim como
assim, não poder ajudar por ausência de mendigos era um lamento tacanho,
oportunista. Passaram ao seguinte ponto da agenda de trabalhos. Se tocava a
interrogar as tão propagandeadas virtudes, fechavam os olhos ao desafio, não
fosse a catarse desatar uma crise existencial. Naquele lugar não podia haver
crises existenciais. Ou tudo se podia esboroar como um frágil castelo de cartas
diante do sopro de um gigante.
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