16.7.15

Correntes de energia sã

Beck, “The Golden Age”, in https://www.youtube.com/watch?v=Y6zAT15vaFk
Era um lugar idílico. Todos confiavam em todos. Todos eram descomprometidos na altura de ajudar os outros que precisassem de ajuda. O eu vinha sempre em segundo lugar. Não havia maldade; não sabiam o que era a maldade. Desde os bancos da escola, onde só se ensinava bondade, altruísmo, despojamento do eu, sentido comunitário da existência, crescia em todos o manancial da sociedade sem párias.
Não havia comportamentos desviantes. Nem crime. Era um caso de estudo: talvez fosse um gene específico, no ADN desta gente não havia o fermento da criminalidade, não havia o trepar às costas dos outros para se ser alguém. Ninguém gostava de notoriedade. Por causa disso, conceberam um pacto não escrito que ditava a entrada rotativa em cena de certos membros para tomarem a coisa pública entre mãos. Os que saíam de cena tinham a garantia de entrarem no anonimato.
Estas gentes conviviam em repastos periodicamente organizados na floresta. Era a sagração da harmoniosa existência em conjunto, sem atritos, sem maus instintos, sem iniquidades. Na ocasião, celebravam a sua especial dimensão. Cantavam e dançavam todos, comiam sem exageros, não abusavam da bebida. À saída da celebração, recolhiam todos os detritos para não ficarem vestígios que ultrajassem a floresta.
As famílias eram esteios de concórdia. Havia respeito recíproco entre os mais velhos e os mais novos. Não viam televisão para evitarem a corrupção das almas. Os jornais eram filtrados, para os mais novos não serem educados no hedonismo contemporâneo e os mais velhos não sucumbirem a tentações que não conheceram em idade própria. Não havia mendigos. Isso aborrecia os habitantes daquele lugar; à falta de mendigos, como podiam exercitar a bondade que fluía nas suas veias?
Numa assembleia cívica, um concidadão questionou se este pesar não era reprimido egoísmo – assim como assim, não poder ajudar por ausência de mendigos era um lamento tacanho, oportunista. Passaram ao seguinte ponto da agenda de trabalhos. Se tocava a interrogar as tão propagandeadas virtudes, fechavam os olhos ao desafio, não fosse a catarse desatar uma crise existencial. Naquele lugar não podia haver crises existenciais. Ou tudo se podia esboroar como um frágil castelo de cartas diante do sopro de um gigante.

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