28.7.15

A valsa dos pés descalço

Gary Clark Jr., “Numb”, in https://www.youtube.com/watch?v=NNH6PX-2euM
A ira desagua num pântano. Podem os seus fundamentos ter fundamento. Podem os olhares contristados lamentar os atos que pertencem à mais pura injustiça. Todavia, não podemos nada contra as arbitrariedades dos outros. Não podemos domar a sua indigência. Muito menos quando somos tomados por vítimas dessa indigência.
Às vezes, as águas de um rio separam-se. Formam um delta, espalhando-se por múltiplos braços de água antes de encontrarem o leito do mar onde se extinguem. Talvez um acidente da natureza tenha forçado a separação das águas, incompatíveis a partir de certa altura. Ou porque uma das metades cavalga vertiginosamente enquanto a outra deseja águas calmas que precedem a ancoragem na foz. Ou porque uma das metades não se satisfaz com a ideia de vogar num caudal em forma de planície, arroteando um curso entre curvas sinuosas, enquanto a outra se contenta com a planura da paisagem. Ou porque a primeira das metades discorda do olhar dominante da outra metade que deixaria de ser sua parceira. E nem importa julgar os imponderáveis que fermentaram a separação dos braços do rio. A certa altura, cada um está nas mãos do destino que quis perfilhar. Se um dos braços encontrou a indigência, a frivolidade, a errância, a inconsequência, ao outro restava a resignação. Ao início, uma certa impotência que medrava em raiva.
E se observamos como dançam os pés descalço, os que se ensaboam numa indigência que nos agride o olhar na sua insolência; e se julgamos, talvez acertadamente, que somos porventura as vítimas de uma soez injustiça; é natural a raiva que toma conta dos sentimentos, numa convulsão interna que parece quase tudo destruir em seus alicerces. O tempo que passar será o ajudante que precisamos. Para aplacar a ira, para perceber que a valsa dos pés descalço, num espetáculo degradante de indigência, é o palco digno para os que não sabem ser dignos se si mesmos.
Saberemos, então, que a raiva é um desperdício. Uma distração da grandeza que somos dentro de um império nosso.

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