24.7.15

A luz trémula

The Art of Noise, “Peter Gunn”, in https://www.youtube.com/watch?v=iH33RIfi2KI
O candeeiro preso à parede confirma a luz pedida. O dedo pressionou o interruptor e, em estando a fatura da eletricidade em dia, a sala escura ganhou luminosidade. É uma luz timorata, porém. Propositadamente. Não interessa ter um aluvião de luz na sala; para o efeito pretendido, chega uma luz que interrompa a escuridão que se tinha apoderado da sala, à boleia da noite.
O corpo cansado de um dia comprido atira-se para a chaise longue. Os olhos fecham-se a macerar a fadiga, a pensar em tudo e a pensar em nada. Já é tarde. Não se ouve barulho na rua. Os carros passam espaçadamente. Não se ouve o ruído de gente; nem sequer do matraquear dos sapatos nas pedras da calçada. Nem dos homens que fazem a recolha do lixo (talvez ainda fosse cedo).
Os olhos entreabrem-se. Notam na luminosidade covarde que vem do candeeiro de parede. Parece uma luz trémula. Irradia uns raios difusos que entram pelos olhos e para eles transportam uma embaciada perspetiva das coisas. Pode ser sinal do dia que tinha sido tão comprido, tão difícil de suportar. A luz que tremia, ou a representação das interrogações que pendiam sobre o dia que tinha seu ocaso. E enquanto o pensamento fazia parceria com o simbolismo da luz timorata, uma pulsão quase levava o corpo a extrair-se da chaise longue cómoda para acender um candeeiro de que viesse uma luz fulgurante. Sentia, nessa pulsão, o cheiro a superstição. Foi o que bastou para reprimir a pulsão e deixar o corpo entregue ao repouso que merecia.
A luz podia tremeluzir, podia ser o pão agachado diante das famintas dúvidas sobre tudo; mas não podia capitular. Não podia dar vencimento à superstição, que desenfreava os instintos primários que recusava em toda a extensão. Antes as dúvidas existenciais a medrarem no lume brando de uma luz trémula. Haveria de ter alguma serventia, alguma beleza intrínseca, até, a luz que tremeluzia. 

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