Portishead, “Roads”, in https://www.youtube.com/watch?v=Vg1jyL3cr60
“Não me tentam nada as
estradas que vão de um ponto a outro, de que sabemos à partida a quilometragem
e a direcção; tentam-me as estradas que não vão dar a nenhum ponto. (...)
Embarcar num navio que nunca chegará, rumar por mapa e bússola ou goniómetro
para o porto que não existe; meter-se uma pessoa ao maior jogo, sem jogar.
(...) Jogar a vida, mas não jogar nada dentro da vida”. Agostinho da Silva,
in Sete Cartas a um Jovem Filósofo, 1945.
As estradas que apetecem: aquelas que não têm toponímia.
Aquelas que parecem rastos perdidos no meio de uma imensidão que insinua o nada
e, todavia, comporta tanta inteireza. Pois são essas estradas, as vadias
estradas que fogem às estipulações, que se abraçam a árvores frondosas de onde
vem o vento sem norte, indomável. As estradas que não precisam de mapa, ou
aquelas que, em dele precisando, só pedem um mapa que seja uma folha em branco
estendida no meio de um céu que é um campo de estrelas. Estradas que não se
sabe onde nos levam. Apenas se sabendo que aportam algures, na incerteza do que
comporta o algures que se desembainha quando a estrada chega a seu cabo.
Estradas retas, estradas com curvas retorcidas, estradas que sulcam planícies
que parecem não ter fim, estradas que devolvem os segredos da serrania,
estradas que beijam a orla de um lago, estradas que demandam a companhia de um
rio. No imperativo de não escrever um rumo; exatamente no seu avesso, deixando
que o rumo seja a matéria espontânea que se compõe nos interstícios do ar arrecadado,
sem que seja preciso perguntar à gente nativa como chegar a um lugar. Porque a
estrada que se percorre é a antinomia de um lugar. Ou, em chegando a um lugar, é
apenas uma etapa que deixa a sua transitória impressão. Recolhemos do céu, que é
um campo de estrelas, os rudimentos que nos conduzem como se fossemos nómadas, errantes
nómadas. Os olhos não se enamoram pela toponímia que empresta espessura às
estradas convencionadas. A toponímia cerceia a identidade dos lugares, torna-os
iguais. Por isso, a vida ganha-se nos dados lançados no grande e aleatório jogo
onde se desenham as estradas sem norte. As estradas sem cais prometidos. No jogo
sem sombras em estrada feita em campo aberto, à espera que do jogo se ensaie um
devir magistral.
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