Air, “Playground Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=8mQ4reLS8Lo
Demoram-se os
segundos, numa textura que os torna tempo adiado. Sente-se como tudo é
intemporal. Na suspensão do olhar, prolongando os gestos que apetecem e as
palavras que são uma quimera, remetendo ao bolso dourado as fotografias do
tempo que merecem um lugar inteiro nos arquivos da memória, sem ganharem bolor.
Mas não é o pretérito
que importa; é a dimensão presente, numa procrastinação febril que se agarra com
as forças todas a um relógio a que não é preciso dar corda. Porque o relógio
não precisa de corda para se manter. E para manter o olhar descomprometido
sobre as coisas, uma avidez singular que agarra com ambas as mãos todos os mananciais
de vida como se eles fossem escassos, frágeis. Visto de fora, ninguém diria que
o são; é preciso sermos postos à prova, na apoplexia de uma provação, para
sabermos que esses são os pergaminhos da existência. O que dá chama à
frugalidade do tempo que nos é consagrado. Se não cuidarmos dele, e se não deixarmos
que seja penhor de um tempo demorado e pleno, não passaremos de gente pela
metade, sitiados por uma vontade exterior que toma conta da nossa própria
vontade.
Por isso, o
sortilégio do relógio sem corda. Não é empreitada fácil, o achamento do relógio
sem corda. Temos muitos nas montras onde se mercam relógios. Muitos em torres
de igrejas, em escaparates onde desfila publicidade, nas estações dos comboios
e nos aeroportos; todos são relógios que carecem de corda. Nenhum desses
relógios tem serventia. As alvíssaras do relógio sem corda situam-se por dentro
de cada um. Somos seus fautores. Mal o consigamos fabricar, com a diligência de
quem se embriaga na vida incomensurável, cabe-nos a função de o conservar.
Temos uma vantagem: o relógio dispensa que lhe demos corda. Ou melhor: a sua mantença
provém do zelo que deitamos na existência abundante que decidirmos ser a nossa.
A força interior que
se soergue e faz ferver as veias, contagia o relógio. Empresta-lhe a corda que
ele precisa. Depois, o movimento é de autossustentação. A menos que sejamos
fautores da nossa autofagia e, num suicidário acesso interior, descuidemos de
tudo o que é fermento da vida imparável. O relógio sem corda permanece no seu
ritmo compassado, na perenidade do tempo. Intemporal. Mesmo depois da partida
derradeira.
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