20.7.16

O relógio sem corda

Air, “Playground Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=8mQ4reLS8Lo
Demoram-se os segundos, numa textura que os torna tempo adiado. Sente-se como tudo é intemporal. Na suspensão do olhar, prolongando os gestos que apetecem e as palavras que são uma quimera, remetendo ao bolso dourado as fotografias do tempo que merecem um lugar inteiro nos arquivos da memória, sem ganharem bolor.
Mas não é o pretérito que importa; é a dimensão presente, numa procrastinação febril que se agarra com as forças todas a um relógio a que não é preciso dar corda. Porque o relógio não precisa de corda para se manter. E para manter o olhar descomprometido sobre as coisas, uma avidez singular que agarra com ambas as mãos todos os mananciais de vida como se eles fossem escassos, frágeis. Visto de fora, ninguém diria que o são; é preciso sermos postos à prova, na apoplexia de uma provação, para sabermos que esses são os pergaminhos da existência. O que dá chama à frugalidade do tempo que nos é consagrado. Se não cuidarmos dele, e se não deixarmos que seja penhor de um tempo demorado e pleno, não passaremos de gente pela metade, sitiados por uma vontade exterior que toma conta da nossa própria vontade.
Por isso, o sortilégio do relógio sem corda. Não é empreitada fácil, o achamento do relógio sem corda. Temos muitos nas montras onde se mercam relógios. Muitos em torres de igrejas, em escaparates onde desfila publicidade, nas estações dos comboios e nos aeroportos; todos são relógios que carecem de corda. Nenhum desses relógios tem serventia. As alvíssaras do relógio sem corda situam-se por dentro de cada um. Somos seus fautores. Mal o consigamos fabricar, com a diligência de quem se embriaga na vida incomensurável, cabe-nos a função de o conservar. Temos uma vantagem: o relógio dispensa que lhe demos corda. Ou melhor: a sua mantença provém do zelo que deitamos na existência abundante que decidirmos ser a nossa.
A força interior que se soergue e faz ferver as veias, contagia o relógio. Empresta-lhe a corda que ele precisa. Depois, o movimento é de autossustentação. A menos que sejamos fautores da nossa autofagia e, num suicidário acesso interior, descuidemos de tudo o que é fermento da vida imparável. O relógio sem corda permanece no seu ritmo compassado, na perenidade do tempo. Intemporal. Mesmo depois da partida derradeira.

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