Morphine, “The Night”, in https://www.youtube.com/watch?v=y7cPGvYjjC8
Pressuposto: ter sorte é alcançar um desiderato que
enche as medidas de quem a sorte veio ungir. Não é por acaso que os agraciados
pela sorte, os vulgarmente apodados “sortudos”, também recebem o epíteto de “felizardos”.
A sorte alivia, enche de contentamento. Se é boa por definição, como se entende
que haja quem deseje aos outros, ou pretenda para si, algo que ressoe a “boa
sorte”? É uma redundância. Se a sorte está ancorada a algo de bom, não é
preciso juntar o adjetivo “boa” à sorte que se deseja a outrem ou como projeto
para si mesmo. Dir-se-á que é uma figura de estilo, o reforço de uma ideia. Como
se as pessoas se esquecessem do significado de sorte e fosse preciso uma mnemónica
com o socorro do adjetivo para que lhes ocorra que, tendo sorte, estão em boas
mãos. Ou pode dar-se o caso de a sorte se ter esvaziado de conteúdo e ser
convocado o adjetivo que recorda o chão em que se suporta a sorte. Talvez a
explicação para a redundância da boa sorte esteja no modismo de achar que a
sorte tem duas caras, a boa e a má. Há pessoas que se lamentam da sorte
madrasta. De volta ao pressuposto: se é coisa boa que vem ao nosso regaço
quando falamos de uma sorte qualquer, como se pode aceitar que a sorte pode ter
uma carantonha feia? É uma contradição de termos. Não é possível virar o leme
para a sorte se no fim do mar está um cais podre e um fado zangado. Não se
trata de sorte; é o seu contrário, o azar. Em sendo azar, e sendo o azar o antónimo
de sorte, a sorte não pode ser má. Insistir na possibilidade de uma má sorte é
um eufemismo virado do avesso. Admita-se que haja gente que enfatiza a boa
sorte porque essa é a sorte que sorri, em contraponto com a sorte que fecha o
rosto e, talvez até, verta uma lágrima. Só que um mau fado, por mau que é, não é
sorte alguma. É azar. Só há azar como antónimo de sorte. De sorte solteira, sem
serventia de adjetivo que seja a água que molha o chão já cheio de água.
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