26.7.16

Cruzamentos

The Heads, “The Damage I Have Done” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=uW56q3EvKbc
O rapaz desce a rua das árvores japonesas sem saber que são árvores japonesas. Está em férias escolares. Os olhos imersos no telemóvel, como se fossem o prolongamento do telemóvel, enquanto os passos lentos se sucedem, maquinalmente. Ninguém esperasse que o rapaz fosse mais depressa: o calor da tarde era um óbice. O rapaz lê e responde a mensagens em linguagem quase cifrada que dois amigos enviam. Distraído, nem dá conta que o passeio termina na confluência com uma avenida larga, onde o trânsito está intenso. Teve sorte: não travou na embocadura da avenida, mas um condutor atento, ao volante de um táxi, travou a tempo de não atropelar o rapaz.
O condutor do táxi abre a janela e profere impropérios, sobressaltado com a desatenção do rapaz. Começa a perorar sobre a estroinice dos rapazes “de agora”, sem que a senhora que transporta no banco de trás tenho pedido opinião. A voz convulsiva, como se um vulcão tivesse sido arrancado às entranhas, serve de palco para a tese cuspida com ferocidade: que estes rapazes “de agora” são estouvados, que não “deslargam” o telemóvel, que são uns alienados e não se interessam por mais nada, que o futuro está hipotecado quando cair nas mãos desta geração – mas nessa altura ele já está sete palmos abaixo da terra para não ser testemunha da catástrofe.
Cansada das generalizações de pacotilha, a senhora muda de ideias e comunica ao taxista para a deixar junto à famosa pastelaria, um punhado de metros abaixo. A senhora é médica pediatra com carreira firmada. Tem um filho que, a ver pela aparência, seria de idade aproximada do rapaz que o taxista quase atropelara. Não gosta de retórica intelectualmente vazia. Seja de taxistas, de políticos que esperneiam na televisão, ou de colegas nos almoços que espaçam as duas partes do dia de trabalho. Sem o admitir, encontra pontas soltas entre o palavreado do taxista e o filho que tem lá em casa. Mas não gosta de generalizações. Daí ter ordenado, com voz ríspida, que o táxi parasse à porta da pastelaria.
A senhora sai do táxi e esbarra num casal de turistas aligeirados de roupa. Pede-lhes desculpa ao mesmo tempo que os turistas, em inglês, também se desculpam pelo sucedido. Os turistas estão na cidade há dois dias. Estranham a canícula – é uma temperatura que não têm no paralelo nórdico onde vivem. Seguem o exemplo da senhora e entram na pastelaria, para terem algum refresco. Ele olha para a empregada do balcão, uma mulata de feições perfeitas que repara no olhar do nórdico turista e, por momentos, se esquece das juras de fidelidade ao namorado que, por aquelas alturas, estaria em viagem para entregar mercadoria no Alentejo. O namorado da empregada do balcão – vir-se-ia a descobrir se toda esta gente travasse conhecimento – é o bebé que teve uma grave pneumonia há vinte e três anos e fora salvo pela pediatra que acabara de se sentar na mesa da pastelaria e pediu uma água das pedras com gelo e limão a um velho empregado de mesa que, em tempos, comprara ao tio da médica um Ford Taunus com cento e vinte e cinco mil quilómetros.
Naquele dia, as personagens todas foram-se deitar sem se lembrarem das outras personagens que, nesse dia e em dias idos, lhes foram tangentes.

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