The Heads, “The Damage I
Have Done” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=uW56q3EvKbc
O rapaz desce a rua das árvores japonesas sem saber que
são árvores japonesas. Está em férias escolares. Os olhos imersos no telemóvel,
como se fossem o prolongamento do telemóvel, enquanto os passos lentos se sucedem,
maquinalmente. Ninguém esperasse que o rapaz fosse mais depressa: o calor da
tarde era um óbice. O rapaz lê e responde a mensagens em linguagem quase
cifrada que dois amigos enviam. Distraído, nem dá conta que o passeio termina
na confluência com uma avenida larga, onde o trânsito está intenso. Teve sorte:
não travou na embocadura da avenida, mas um condutor atento, ao volante de um táxi,
travou a tempo de não atropelar o rapaz.
O condutor do táxi abre a janela e profere impropérios, sobressaltado
com a desatenção do rapaz. Começa a perorar sobre a estroinice dos rapazes “de
agora”, sem que a senhora que transporta no banco de trás tenho pedido opinião.
A voz convulsiva, como se um vulcão tivesse sido arrancado às entranhas, serve
de palco para a tese cuspida com ferocidade: que estes rapazes “de agora” são
estouvados, que não “deslargam” o telemóvel, que são uns alienados e não se
interessam por mais nada, que o futuro está hipotecado quando cair nas mãos
desta geração – mas nessa altura ele já está sete palmos abaixo da terra para não
ser testemunha da catástrofe.
Cansada das generalizações de pacotilha, a senhora muda
de ideias e comunica ao taxista para a deixar junto à famosa pastelaria, um
punhado de metros abaixo. A senhora é médica pediatra com carreira firmada. Tem
um filho que, a ver pela aparência, seria de idade aproximada do rapaz que o
taxista quase atropelara. Não gosta de retórica intelectualmente vazia. Seja de
taxistas, de políticos que esperneiam na televisão, ou de colegas nos almoços
que espaçam as duas partes do dia de trabalho. Sem o admitir, encontra pontas
soltas entre o palavreado do taxista e o filho que tem lá em casa. Mas não
gosta de generalizações. Daí ter ordenado, com voz ríspida, que o táxi parasse à
porta da pastelaria.
A senhora sai do táxi e esbarra num casal de turistas aligeirados
de roupa. Pede-lhes desculpa ao mesmo tempo que os turistas, em inglês, também se
desculpam pelo sucedido. Os turistas estão na cidade há dois dias. Estranham a
canícula – é uma temperatura que não têm no paralelo nórdico onde vivem. Seguem
o exemplo da senhora e entram na pastelaria, para terem algum refresco. Ele olha
para a empregada do balcão, uma mulata de feições perfeitas que repara no olhar
do nórdico turista e, por momentos, se esquece das juras de fidelidade ao
namorado que, por aquelas alturas, estaria em viagem para entregar mercadoria no
Alentejo. O namorado da empregada do balcão – vir-se-ia a descobrir se toda esta
gente travasse conhecimento – é o bebé que teve uma grave pneumonia há vinte e
três anos e fora salvo pela pediatra que acabara de se sentar na mesa da
pastelaria e pediu uma água das pedras com gelo e limão a um velho empregado de
mesa que, em tempos, comprara ao tio da médica um Ford Taunus com cento e vinte
e cinco mil quilómetros.
Naquele dia, as personagens todas foram-se deitar sem se
lembrarem das outras personagens que, nesse dia e em dias idos, lhes foram tangentes.
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