Wand, “Sleepy Dog”, in https://www.youtube.com/watch?v=9FNVBivw18U
Numa terra em que pouco mais de metade da força de
trabalho é funcionária do Estado, é uma ousadia proclamar, com assertividade,
que não serei funcionário público. Para além de ousado, é imprudente: as curvas
imensas que atropelam a vida, aconselham a que se não diga nunca a algo que o pode
ser a qualquer momento. Mas é ousado, também. Por causa dos estereótipos do
funcionário público, que o funcionário público sente como ultraje: dizem que
trabalham pouco e são pouco produtivos, que são pouco responsáveis pelo que
fazem, que são arrogantes quando têm de lidar com o público (afinal, o seu patrão),
que têm regalias que os seus pares do setor privado não têm – a maior das
quais, o emprego imorredoiro. E é ousado, porque desdenhar de mais de metade da
força de trabalho não augura ao seu autor que venha a fazer boas amizades com
funcionários públicos.
Não é por estes motivos que não quero ser funcionário público.
A rejeição é mais – por assim dizer – etimológica. O que obriga a começar pela
origem das palavras contidas na expressão “funcionário público”. Primeiro, é um
“funcionário”. O que não se entende: sendo a função pública um lugar permeável
a sindicatos, e pautando-se os sindicatos pela cartilha marxista, devia o
sector público adotar o étimo “trabalhador”, pois é o que releva para a retórica
da luta de classes. Na cartilha marxista da luta de classes, de um dos lados da
contenda estão trabalhadores (e não funcionários). Junte-se outra observação
que concorre para o reforço dos estereótipos que são um desprestígio para o
funcionário público: sendo funcionários, têm funções; ninguém garante que
trabalhem para executar essas funções. Pois se a primazia etimológica vai para
a função, não há garantias que os seus prestadores metam mãos à obra (que trabalhem,
na lógica não apenas marxista) para que as funções apareçam feitas.
Segundo, o funcionário é “público”. Que não haja equívocos:
não vou convocar uma certa estultícia e ignorar a etimologia de “público”
quando aparece como adjetivo ulterior a “funcionário”. É um funcionário que
trabalha para o Estado – eis o sentido corrente da palavra no seu contexto
convencional. Mas o étimo presta-se a equívocos, ou, ao menos, a uma certa
manipulação (coisa que me está a apetecer nesta altura): pois se um funcionário
é “público”, e nós, o povo (segunda inadvertência marxista no mesmo texto...)
somos o tutor do que é público, um funcionário público ao público pertence.
E é isto que me causa espécie: o desapossar da pessoa do
funcionário que trabalha para o Estado, pois é público. E se público é, o público
pode fazer o que lhe aprouver. Alguém se quer pôr a jeito?
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