4.7.16

Vestias de preto

Pixies, “Monkey Gone to Heaven”, in https://www.youtube.com/watch?v=EHC9HE7vazI
A constelação de cores reduzida ao mínimo. Vestuário minimalista, no que à cor dizia respeito. Querias que fosse visto como um sinal de insubmissão. Ou como a intransigência com os modismos culturais de massa. Podia ser, apenas, uma preferência estética. Sabias que os outros, os que de ti formavam julgamento com base no vestuário preto, tutelavam diferentes ideias da tua estética. Não te interessava; ou melhor: importava-te, ao ponto de teres um prazer inconfessado de ultrajar as consciências acomodadas que te olhavam ora com desdém, ora com uma comiseração avulsa que tinha tanto de genuína como de inútil.
Vestias de preto. Fosse a estação que fosse. Havia alturas em que admitias que o vestuário era marcial. Arrítmico, talvez monótono, repetitivo, pela ausência de cor – se aceitasses os padrões que julgam a bondade das cores e atribuem ao preto a ausência de cor; o que não era, manifestamente, o teu caso. Os pais dos amigos não te tinham em consideração de boa companhia. Era pior quando, sem ser tua intenção, contagiavas alguns dos que te eram mais próximos e eles também passavam a usar roupas escuras. O problema passava a ser dos excelsos progenitores que desprezavam a indumentária preta, logo atirando para o seu regaço a pertença a movimentos hereges que convocavam uma confraria de demónios, ora jurando que de preto se veste quem testa um luto.
Houve vezes em que, cansado de vestir de preto, consideraste a possibilidade de investir em nova estética, mais tributária das cores consagradas pela turba. A rebeldia que fervia no sangue acabava por travar a mudança; uma ou outra vez, perante o incómodo de quem para ti olhava e julgava seres membro de uma seita que bebia sangue de animais esventrados, ou que, néscio, te julgava em pungente luto, varrias para o oblívio a intenção da mudança estética.
Não estavas em luto, nem sabias ao de leve isso de sociedades secretas com fins inconfessáveis – o sangue, por sinal, metia-te espécie. Apenas gostavas do preto. Ao contrário das convenções, julgavas o preto a síntese de todas as cores. Quando as cores garridas vinham a pleito e esbarravam umas nas outras, da anulação recíproca das cores sobrava o preto. Foste pelo tempo fora e não deixaste de vestir de preto. Já adulto e, pelos cânones bem-pensantes, pessoa responsável e dotada de uma certa importância, preto foi sempre a tua cor.

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