19.7.16

Doideira iminente

Massive Attack, “Unfinished Sympathy”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZWmrfgj0MZI
Cansado da luz do sol, do feixe de calor que vem por alturas do estio.
Cansado dos autocarros que bolçam poluição insuportável.
Cansado dos “pipis” que se aperaltam numa distinta indumentária que fala por eles, sem que precisem de apresentar pergaminhos, a não ser a indumentária.
Cansado das casas de apostas onde tanta gente desgraça a vida (e um punhado vê servida a sorte em aleatórias doses).
Cansado de ver mendigos sem teto que os aloje.
Cansado do pungente quadro de um velho andrajoso que arrasta os pés envergando três casacos e botifarras despedaçadas em dia de calor abrasador.
Cansado de imaginar os gestores da moda, os que embolsam salários milionários e abastados “prémios de produtividade”, a passarem nas suas limousines e a cuspirem para a pobreza com a sua indiferença.
Cansado da rudeza no trato.
Cansado da boçalidade que amesenda pelos restaurantes fora.
Cansado da desconfiança metódica.
Cansado das palavras que ganham significado diferente – ou, dir-se-ia, que perdem a sua cautela original, uma vez adulteradas.
Cansado de governantes hipócritas, que sobem para o tabuleiro do jogo e jogam um jogo de pesos e contrapesos e se demitem das decisões que importam.
Cansado dos oportunistas.
Cansado dos domadores de almas.
Cansado dos fanáticos pela vida dos outros.
Cansado de tudo isto (e de ainda mais, que não vem ao rol nesta altura), apetecia-lhe a loucura.
A doideira iminente: sair à rua nu, sem pudor nem as mãos tapando os genitais, declamando poemas de Cesariny, de Herberto, de Al Berto, de Walt Whitman, cumprimentando polícias atónitos, exibindo genuflexão aos operários das obras, roubando flores aos jardins, almoçando em cima de estátuas ao calhas, tomando banho no rio (sem dar conta das águas pouco recomendáveis), errando pela noite bebendo aqui e ali, dormindo em camas ao acaso, professando as religiões todas, prestando homenagem aos animais no simbólico lugar que é o jardim zoológico, prestando respeito às mulheres de rua que na rua vendem os corpos ao prazer dos outros, ornamentando o dia seguinte com uma coreografia extravagante e um texto rabeando nas floreiras do surrealismo.

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