6.2.17

Emaranhado


King Gizzard & The Lizard Wizard, “People-Vultures, in https://www.youtube.com/watch?v=6f78_Tf4Tdk    
Como teias gastas, mas empedernidas, impossíveis de embotar. O corpo parado numa encruzilhada, a meio caminho entre duas léguas diferentes com olhar para o abismo. Os braços atados numa camisa-de-forças, em que foi metido sem saber como. Caminhava, sem parar. Sem saber por onde ir, apenas caminhando. Dia e noite fora.
Às vezes, fechava os olhos e sonhava que estava a dormir. Ou, também podia ser, era um espaçoso mar com ondas encapeladas a engolir navios mercantes com a impiedade de um demónio sem freio. De repente, abria os olhos e via-se subjugado por uma camisa-de-forças, morto de sede, corrompido pela desorientação e, porém, penhor de uma vontade indomável de prosseguir o caminho errante. Um par de falcões sobrevoava-o. Não pareciam estar em pose ameaçadora. Mais pareciam estar de atalaia, talvez para o socorrer caso fosse preciso. Aliviou o sobressalto contínuo.
Já não dormia há três noites seguidas e o cansaço não o consumia. As mãos sem vontade queriam aplaudir a tenacidade, mas um módico de razão freava o instinto: assim como assim, tratava-se de uma errância, inconsequente como são as errâncias – e as mãos estavam agrilhoadas, não se podiam mexer. Não arriscava perguntar aos meandros da alma sobre a serventia da empreitada. Tinha medo de mergulhar num vórtice de interrogações sucessivas, cada vez mais complexas, e que a ausência de respostas o dilacerasse. De repente, pôs-se circunspecto. Queria saber quando seria o tempo do sono, sem ficar refém de sonhos variegados que pareciam ser um campo de batalha onde não tinha armas para terçar. A chuva, imprevista (como sabia ser imprevista, era outra incógnita), tornou as coisas mais árduas. As roupas encharcadas enrodilharam o emaranhado de si já denso. Fundiram-se com o corpo, numa osmose impercetível. O cansaço continuava a sua recusa, paradoxalmente.
Deu o peito à tempestade enquanto a noite se compunha. Não deu conta de o tempo passar e a alvorada irrompia. A chuva continuava a sua prece cruel. Insistente, desafiou tudo à sua volta, apesar de a tempestade ter crescido. Devolvido ao emaranhado de si mesmo, sentia-se tutor de tudo o que pudesse ser ameaça. Afinal de contas, era como se fosse um deus (apesar de continuar a dar-se como ateu).

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