Her, “Five Minutes” (Live
at Moth Club), in https://www.youtube.com/watch?v=r1wB4bLCGXE
I
O vento propaga-se, bolçado por divindades
distantes que, dizem, encontram coutada em árticas paisagens. O cabelo
despenteia-se e os dedos, espontaneamente, sulcam as ondas do cabelo procurando
compô-lo. Ao lado, no banco do jardim, duas senhoras velhas entretêm-se numa
palavrosa conversa. Talvez estejam a lobrigar as muitas especulações fermentadas
pelo seu imaginário. (Há quem lhes chame alcoviteiras.) Ainda dizem que o cérebro
envelhecido se cansa.
II
O taxista ensaia uns passos lentos à
sombra. Talvez estivesse sentado há muito tempo ao volante e as pernas pedissem
desentorpecimento. O olhar esbarra com o chão por onde passam os pés, nota num
papel amarrotado mesmo na embocadura dos sapatos. Curva-se para apanhar o papel
e saciar o interesse que a necessidade de matar o tempo explica. Trata-se de um
anúncio de um curandeiro com raízes em África. Promete curar até os males do
desamor e aceita pagamento contra resultados.
III
A adolescente pespega-se à janela do
metro, dispersando os pensamentos à medida que o casario se desenovela à
passagem da composição em seu ruído metálico. O olhar perdido no horizonte, que
ninguém consegue retratar, enquanto ouve uma música escondida pelos
auscultadores (não dando conta do ruído metálico da composição). Talvez esteja
a sonhar com um ídolo musical, ou com um artista de cinema. A sonhar em sair da
vida mundana que os sonhos prometem, isso é que não.
IV
A florista e a peixeira não se
conhecem e rivalizam, sem o saberem, nas respetivas funções separadas pela rua
que divide os seus estabelecimentos comerciais. A florista não sabe o que é o
odor do peixe impregnado nas unhas. A peixeira já comprou flores quando vai a
funerais.
O funcionário bancário, como de
costume envergando galante fato e gravata, estaciona o automóvel e procura o
parquímetro para não ser multado. Hoje traz umas olheiras danadas. A rapariga
que lhe serve o café todas as manhãs pergunta-se o que terá causado a noite mal
dormida: uma insónia vertida por insanáveis problemas, ou uma paixoneta tórrida
que deu origem a uma longa noite em branco?
V
Os três estudantes vão a caminho da
escola. Usam a linguagem quase codificada dos adolescentes. A mulher de meia
idade que segue na sua peugada não consegue evitar a conversa, tão estridente. Ficou
sem saber se os estarolas apenas ouvem mal (e, por conseguinte, têm de afinar a
voz por um alto diapasão para se ouvirem uns aos outros), ou se é apenas para
toda a gente ficar a saber o quase dialeto em que comunicam.
VI
O poeta acordou tarde e sem apetite. Pensa,
demoradamente, para sentir se um movimento telúrico traz as palavras inspiradas
das camadas mais subterrâneas do húmus. Finda o dia com a página em branco. O
poeta continua imperturbável: o deserto de inspiração acontece a cada três
dias. Há quem o acuse de preguiça. Não se importa. Prefere ter como estalão a
medida qualitativa das coisas.
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