24.2.17

Inter alia


Her, “Five Minutes” (Live at Moth Club), in https://www.youtube.com/watch?v=r1wB4bLCGXE    
I
O vento propaga-se, bolçado por divindades distantes que, dizem, encontram coutada em árticas paisagens. O cabelo despenteia-se e os dedos, espontaneamente, sulcam as ondas do cabelo procurando compô-lo. Ao lado, no banco do jardim, duas senhoras velhas entretêm-se numa palavrosa conversa. Talvez estejam a lobrigar as muitas especulações fermentadas pelo seu imaginário. (Há quem lhes chame alcoviteiras.) Ainda dizem que o cérebro envelhecido se cansa.
II
O taxista ensaia uns passos lentos à sombra. Talvez estivesse sentado há muito tempo ao volante e as pernas pedissem desentorpecimento. O olhar esbarra com o chão por onde passam os pés, nota num papel amarrotado mesmo na embocadura dos sapatos. Curva-se para apanhar o papel e saciar o interesse que a necessidade de matar o tempo explica. Trata-se de um anúncio de um curandeiro com raízes em África. Promete curar até os males do desamor e aceita pagamento contra resultados.
III
A adolescente pespega-se à janela do metro, dispersando os pensamentos à medida que o casario se desenovela à passagem da composição em seu ruído metálico. O olhar perdido no horizonte, que ninguém consegue retratar, enquanto ouve uma música escondida pelos auscultadores (não dando conta do ruído metálico da composição). Talvez esteja a sonhar com um ídolo musical, ou com um artista de cinema. A sonhar em sair da vida mundana que os sonhos prometem, isso é que não.
IV
A florista e a peixeira não se conhecem e rivalizam, sem o saberem, nas respetivas funções separadas pela rua que divide os seus estabelecimentos comerciais. A florista não sabe o que é o odor do peixe impregnado nas unhas. A peixeira já comprou flores quando vai a funerais.
O funcionário bancário, como de costume envergando galante fato e gravata, estaciona o automóvel e procura o parquímetro para não ser multado. Hoje traz umas olheiras danadas. A rapariga que lhe serve o café todas as manhãs pergunta-se o que terá causado a noite mal dormida: uma insónia vertida por insanáveis problemas, ou uma paixoneta tórrida que deu origem a uma longa noite em branco?
V
Os três estudantes vão a caminho da escola. Usam a linguagem quase codificada dos adolescentes. A mulher de meia idade que segue na sua peugada não consegue evitar a conversa, tão estridente. Ficou sem saber se os estarolas apenas ouvem mal (e, por conseguinte, têm de afinar a voz por um alto diapasão para se ouvirem uns aos outros), ou se é apenas para toda a gente ficar a saber o quase dialeto em que comunicam.
VI
           O poeta acordou tarde e sem apetite. Pensa, demoradamente, para sentir se um movimento telúrico traz as palavras inspiradas das camadas mais subterrâneas do húmus. Finda o dia com a página em branco. O poeta continua imperturbável: o deserto de inspiração acontece a cada três dias. Há quem o acuse de preguiça. Não se importa. Prefere ter como estalão a medida qualitativa das coisas.

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