9.2.17

O degelo do sol


The Durutti Column, “Duet With Piano”, in https://www.youtube.com/watch?v=6vfJf_SzthA    
Um lamento recorrente: a ostensiva afetuosidade tinha um fino verniz e, debaixo desse verniz, medrava um gelo inquebrantável. Como se fosse um ator exímio em cima do palco, mostrando uma personagem nos antípodas dos seus genuínos pergaminhos. Havia quem admitisse que preferia as pessoas lívidas, impassíveis, incapazes de serem fautoras de gestos afetuosos, as que eram um oráculo de antipatia; ao menos – concluíam, em favor desta teoria – não havia artifícios que, em vez de serem satélites do ser, constituíam a sua essência.
Diziam, a desfavor de que se fala, que nunca sabiam quando ele falava verdade (pois a verdade era muito importante para estas pessoas; e não adiantava contrapor que a verdade é uma ilusão, de tão subjetiva que pode ser). Protestavam: os afetos devolvidos eram matéria vã, não tinham sabor, não tinham significado. Era como ter o vento dentro das mãos e, logo depois, abri-las e não ver nada alojado no seu interior.
Havia quem propusesse ser impossível lidar com esta ambivalência. Quem o não conhecesse, diria serem impossíveis tão más credenciais desenhadas por quem o conhecia. Sendo tão astuto, tão diligente no cavalheirismo, tão pronto na irradiação de charme, porta-voz da cortesia, detentor de todos estes predicados, como era possível ter sob a pele o penhor de tudo o que se opunha a esses predicados? Como era possível alguém fabricar tamanha impostura?  
Houve quem viesse suavizar os maus juízos que sobre ele se faziam. Deitando água na fervura, os penhores de um certo realismo, fincando os pés em chão seguro, advertiam para o absurdo das medidas líricas que embaciavam a lucidez. Olhavam debaixo da pele dura que escondia justamente o contrário do que era louvado por quem dele apenas tinha uma primeira impressão (que era, invariavelmente, uma impressão de encantamento). No fim de contas, o mundo está coberto de insídia. Se não nos protegermos contra ela, acabamos por ser sua presa – concluíam os seus putativos advogados de defesa.
Por tais razões, o ajuramentado da imprestável frieza era credor de condescendência. Pelo menos de quem o defendia – talvez outros da mesma igualha.

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