21.2.18

O que fazemos com o tempo: enganamo-lo, ou deixamo-nos enganar por ele?


Mr. Herbert Quain, “Too Late to Find Something in the Shadows”, in https://www.youtube.com/watch?v=lcDIPk4KuBM    
Disse: “Devíamos proibir os relógios; melhor (porque a proibição seria incapaz): devíamos destruir todos os relógios.
Alguém que o ouvia, perplexo com o protesto, agitado com demanda tão excessiva, quis saber mais. Obteve resposta não demorada: “O tempo é um guerreiro implacável. Não tem dó de nós. E o tempo é uma medida sempre célere, um vilão que se apodera de todos os palcos e cobre seu manto sobre os nossos corpos indefesos. Não quero ser penhorado pelo tempo. Não quero ser um seu acaso. E dos relógios afinal sobra o opróbrio incontestável, a matéria incindível que reacende feridas.” Será porque – disparou em forma de pergunta-provocação, ainda inconformado com a proclamação virulenta – “dos relógios sobra a improfícua espessura da história? E da história nem sempre se colhem os vestígios cómodos, ficando uma veste argilosa que desarranja a pele?
Desta vez a dilucidação ficou refém de uns instantes de pensamento: “Esse é um ângulo possível. O tempo – sabes? – tem múltiplos tentáculos. Olhes para onde olhares, vês o tempo tirano a atirar as suas cinzas plúmbeas ou a ser generoso e a deixar um dia soalheiro ter lugar no cais do olhar. Ao contrário de ti, não dou importância ao excruciante vagar do tempo pretérito. Não o deixo ser penhor. Insurjo-me contra a terrível voracidade do tempo que se escapa por entre os dedos. Insurjo-me contra a ciclópica errância em que somos aquartelados, este ciclo vicioso de nos sentirmos açambarcados pelo tempo fugaz e, mesmo assim, querermos por ele passar à velocidade de um cometa. Já nem falo da incompreensível hibernação que é o aforro do tempo atual como se fosse o provedor de um sempre incerto tempo vindouro. Por isso reafirmo: os relógios deviam ser banidos. Podia ser que não tivéssemos de olhar para o tempo como a totalitária dimensão do ser.
Ambos olharam em frente, sobre as rochas à mercê do mar hostil. Olhavam para as rochas indefesas, como tinham sido expostas à erosão do mar hoje hostil. Intuíam o entardecer e de como não demorava a ficarem sem paisagem sobre o mar que começava a interiorizar as pálidas cores do ocaso. A luz decadente, talvez a metáfora para as respostas que se ausentavam. Ainda houve tempo para a derradeira interrogação: “devemos enganar o tempo, ou tudo fingir, até não darmos conta que somos enganados por ele?
O enfurecido interlocutor, em interiores convulsões fermentadas no desaguisado com o tempo, não arranjou tempo para responder a tempo antes da luz diurna desfalecer. Ainda não tinha descoberto o sortilégio de matar todos os relógios à face do planeta.

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