27.2.18

Os custos da dissidência


Tindersticks, “Let’s Pretend” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=S0N_XYAjXPk    
Se pudesse, se estivesse fosse afoito, chegava junto aos da casta e berrava-lhes ao ouvido, um a um, devidamente perfilados para ouvirem a sua proclamação solene: “detesto pensar da mesma maneira que tu – detesto pensar da mesma maneira que tu – detesto pensar da mesma maneira que tu – e assim sucessivamente.”
Vaticinava, porém, um tremor paralisando os movimentos, paralisando a voz. Ou então, caso conseguisse sobrepor-se à anestesia da vontade, pressagiava uma reação desabrida dos da casta. Seria acusado de traição. A heresia não ficaria impune, com iracundas promessas de represálias, porventura com custos para a sua integridade física (pois conhecia de ginjeira os da casta: alguns prometiam violência gratuita como forma de sopesar a razão que julgavam estar do seu lado). Temia que passasse de palavra em palavra o topete da dissidência e, no acerto de contas prometido, acabasse sozinho, sem ter alguém com quem falar.
Não estava seguro se queria ser pária; ou se, para o não ser, tinha de ir fazer vida para outro, remoto, lugar, onde ninguém soubesse da desavença. Nunca fora de atos que exigissem coragem. Nem de coragem física (talvez por causa da franzina constituição corporal) nem, ainda menos, de coragem intelectual. Lembrava-se de pelejas de ideias em que retrocedia no tabuleiro de jogo quando o adversário crescia com argumentos a que não conseguia oferecer imediata contestação. Entrava em pânico: à falta de contra-argumento na ponta da língua, sentia o flanco exposto; era como um dique a abrir brechas por todos os lados e a água a inundar o terreiro das ideias. Se houvesse coragem para a demissão, a apoplexia cuidaria de retirar palavras da bagagem, a gramática seria um pesadelo e a retórica uma profusão de palavras amontoadas, sem fio c0ndutor. Ficaria à mercê dos da casta, que usariam toda a implacabilidade para o reduzirem a nada.
Andou tempo a eito a pensar no palco montado, a ensaiar discurso metodicamente preparado, a mentalizar-se que não podia ser atraiçoado por um coração impulsivo. Reviu, vezes e vezes, a estratégia e as consequências prováveis. Tudo desaguava num palco onde ele era abandonado à desgraça, à irremediável desgraça. (Contrapondo, aos que sugerissem que outros o podiam acolher, que não estava interessado. A orfandade não se compensa. E não estava interessado em fingir outras ideias. Aliás, sentia-se órfão de ideias.)
Imerso numa desta demoradas revisões, descobriu a chave para o nó cego que o amordaçava: tinha a certeza que a dissidência, depois de comunicada, faria os mais radicais reduzi-lo a nada. Era justamente o que queria. Que o seu nome fosse riscado das atas, dos monumentos, das fotografias – do escol. Riscado daquela pertença. Pois “pensar da mesma maneira que eles” era uma violência interior que deixara de suportar.

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