Unknown Mortal Orchestra, “American
Guilt”, in https://www.youtube.com/watch?v=4-JlcmCxIXU
Já não sabia como eram apalavradas
as cores. Talvez tenha sido enganado pelos sonhos. Pois, se bem me lembro, os
sonhos são passados numa tela monocromática. Não há cores. Cores como
aprendemos pelos compêndios do senso-comum. Pois os sonhos, na sua intrínseca rebeldia,
não quadram com o senso-comum. São como cavalos indomáveis no seu nomadismo por
serranias remotas.
Parecia-me estranha a impressão
da ausência de cores quando era ator por dentro de um sonho. Somos animais de hábitos
– lá augura outro lugar-comum. Ao início, a monocromia fazia-me sentir um corpo
estranho quando era apanhado, contra a vontade, por dentro de um sonho. Tinha de
admitir: sentia a falta das cores. Era como se o palco que dava corpo aos
sonhos, na ausência de cores, fosse a antítese do meu mundo – ou o seu avesso. Parecia
que viajava em transgressão por dentro dos sonhos. Era um mero passageiro, um
agente passivo por dentro dos sonhos. O simples facto de para eles ser arregimentado
sem ser indagada a minha vontade era significativo. A contravenção da vontade
era – assim o entendia, ao início – o selo que ditava os sonhos a preto e
branco. Não podia vir a culpa ao meu regaço por tudo o que os sonhos
adestrassem. Eles transbordavam a minha vontade.
Mais tarde, percebi o sortilégio
dos sonhos banhados em tela monocromática: é como no cinema: a escolha de uma
tela a preto e branco não é sinal de qualidade inferior. É uma escolha estética.
Apenas uma escolha estética. No fundo, um acaso. Com a nova grelha de leitura, já
não tinha de compreender por que eram a preto e branco os sonhos em que me
achava aprisionado. Tinha de começar por esta conjetura: era errado ter-me como
refém dos sonhos. Por mais inconsequentes, ou aberrantes, ou que até pudessem
figurar na constelação das coisas surreais, os sonhos eram um acaso. Ainda que
o seu enredo fosse uma improbabilidade completa. Ainda que fossem ininteligíveis
e neles entrassem personagens desconhecidas. Ainda que adejasse o estigma da
vontade contrariada.
Os sonhos eram um acaso. Por isso,
eram a preto e branco. Por isso, eram improcedentes as culpas. Infundamentados os
possíveis presságios que se podem extrair da colheita de um sonho. Os bons e os
maus. Os sonhos eram um acaso – repetia, para me convencer do preceituado. Tutores
de uma dimensão alternativa. Episódios que podiam ter tido um lugar e um tempo
próprios. Como se uma camada invisível se insinuasse nos interstícios de tudo. E,
decantado o verniz que protege os sonhos, um palco a preto e branco se emprestasse
como húmus de uma impossibilidade.
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