23.2.18

Os sonhos eram a preto e branco


Unknown Mortal Orchestra, “American Guilt”, in https://www.youtube.com/watch?v=4-JlcmCxIXU    
Já não sabia como eram apalavradas as cores. Talvez tenha sido enganado pelos sonhos. Pois, se bem me lembro, os sonhos são passados numa tela monocromática. Não há cores. Cores como aprendemos pelos compêndios do senso-comum. Pois os sonhos, na sua intrínseca rebeldia, não quadram com o senso-comum. São como cavalos indomáveis no seu nomadismo por serranias remotas.
Parecia-me estranha a impressão da ausência de cores quando era ator por dentro de um sonho. Somos animais de hábitos – lá augura outro lugar-comum. Ao início, a monocromia fazia-me sentir um corpo estranho quando era apanhado, contra a vontade, por dentro de um sonho. Tinha de admitir: sentia a falta das cores. Era como se o palco que dava corpo aos sonhos, na ausência de cores, fosse a antítese do meu mundo – ou o seu avesso. Parecia que viajava em transgressão por dentro dos sonhos. Era um mero passageiro, um agente passivo por dentro dos sonhos. O simples facto de para eles ser arregimentado sem ser indagada a minha vontade era significativo. A contravenção da vontade era – assim o entendia, ao início – o selo que ditava os sonhos a preto e branco. Não podia vir a culpa ao meu regaço por tudo o que os sonhos adestrassem. Eles transbordavam a minha vontade.
Mais tarde, percebi o sortilégio dos sonhos banhados em tela monocromática: é como no cinema: a escolha de uma tela a preto e branco não é sinal de qualidade inferior. É uma escolha estética. Apenas uma escolha estética. No fundo, um acaso. Com a nova grelha de leitura, já não tinha de compreender por que eram a preto e branco os sonhos em que me achava aprisionado. Tinha de começar por esta conjetura: era errado ter-me como refém dos sonhos. Por mais inconsequentes, ou aberrantes, ou que até pudessem figurar na constelação das coisas surreais, os sonhos eram um acaso. Ainda que o seu enredo fosse uma improbabilidade completa. Ainda que fossem ininteligíveis e neles entrassem personagens desconhecidas. Ainda que adejasse o estigma da vontade contrariada.
Os sonhos eram um acaso. Por isso, eram a preto e branco. Por isso, eram improcedentes as culpas. Infundamentados os possíveis presságios que se podem extrair da colheita de um sonho. Os bons e os maus. Os sonhos eram um acaso – repetia, para me convencer do preceituado. Tutores de uma dimensão alternativa. Episódios que podiam ter tido um lugar e um tempo próprios. Como se uma camada invisível se insinuasse nos interstícios de tudo. E, decantado o verniz que protege os sonhos, um palco a preto e branco se emprestasse como húmus de uma impossibilidade.

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