9.2.18

A santa igreja castradora


Blur, “Out of Time”, in https://www.youtube.com/watch?v=SRkX1Up1vnc    
Tenho um defeito (enfim, são muitos): desconfio de alguém que atira pedras a outrem, sendo o acusatório libelo algo de que protesta ser entorse aos “bons costumes”. Nessa altura desconfio que o acusador padece do mesmo mal e se enovela em dilemáticas dores interiores, descarregando-as sobre o alheio que ostenta tais vícios privados. Ou então, o Torquemada de trazer por casa destila uma inconfessável inveja disfarçada de libelo acusatório; como ele gostava de ser agraciado com tais deleites.
A igreja católica tem inúmeros problemas. São os seus problemas, com os quais nada tenho a ver, pois um observador exterior (eufemismo para ateu) não se deve importunar com os trabalhos internos da igreja. Quando a santa igreja decreta imperativos comportamentos aos fieis, não consigo deixar de meter o bedelho. Bem sei que tais deveres se não me dirigem, por causa da irremediável perdição pessoal do ateísmo. O que me transtorna, é como pode a santa igreja legiferar sobre os comportamentos das pessoas de que se diz serem seu rebanho. Sobretudo em matérias que, de acordo com os cânones aplicáveis, são de desconhecimento vivencial da hierarquia eclesiástica (ou deviam ser).
O cardeal de Lisboa decretou: os que já caíram no terrível pecado do divórcio e que voltarem a sucumbir ao apelo do matrimónio, repetindo a dose, que limitem os danos de tão irreparável estatuto (o divórcio que antecedeu o segundo – ou o terceiro, ou quarto, e por aí fora – matrimónio) através da abstinência sexual. Se bem me recordo, as leis da igreja (e as civis também) admitem a possibilidade de anulação de um casamento desde que não tenha sido consumado. A consumação remete para a existência de sexo entre os consortes. Chama-se a isto “casamento rato e não consumado”. (Ainda hoje estou para perceber por que se convencionou que um casamento a que faltou consumação é “rato”.) Se é possível anular um casamento porque os matrimoniáveis não diligenciaram os prazeres carnais, como se pode defender um casamento (o que for posterior à infâmia do divórcio) se se impetra a ausência de sexo?
Não me importam as incoerências da santa igreja católica – é um problema que eles têm de resolver. Já me incomoda que haja pessoas (os fieis) que se sintam acossados pelas superiores determinações da hierarquia eclesiástica, sobretudo quando essas determinações possam entrar em conflito com a sua natureza enquanto pessoas. Que se saiba, o sexo ainda não deixou de fazer parte intrínseca da natureza humana, por mais que a santa igreja insista em pespegar um rótulo maquiavélico ao sexo.
Ponto da situação (para se tentar entender este risível episódio): duas pessoas enamoram-se e decidem contrair matrimónio; sobre elas (ou uma delas) pesa o jugo de divórcio anterior; se as pessoas se enamoram, é porque existe atração (da qual faz parte a atração física); essa relação pede sexo; a santa igreja manda dizer que se podem casar, mas devem reprimir os deletérios desejos carnais.
De uma vez por todas, a igreja é uma entidade castradora.

Sem comentários: