U. S. Girls, “Pearly Gates”,
in https://www.youtube.com/watch?v=k9PLXHDEUFE
- Vejo que tens uma
lista negra à tua guarda no bolso do casaco.
- Como sabes que é uma lista negra?!
- Consigo ler no
cabeçalho.
- É do foro pessoal.
- Tens pudor em
mostrar aos outros quem são os ódios assim arregimentados?
- Partes de pressuposto erróneo. Uma lista negra não
contém, necessariamente, ódios.
- Se eu fosse
desafiado a fazer uma lista negra, inventariava os ódios.
- Acabas de admitir que consegues elencar ódios. Eu
não os tenho.
- Pode ser uma
questão semântica.
- O que queres dizer?
- A mesma palavra
tem significados diferentes para diferentes pessoas. Da mesma maneira, uma
certa realidade leva duas pessoas a usarem descritivos diferentes.
- Insinuas que na minha lista negra figuram ódios a
quem, por uma questão semântica, recuso a apostrofar como tal?
- Sabes o que são
eufemismos?
- Queres ensinar o bê-á-bá da língua?!
- De todo. Desculpa
se te ofendi.
- Passemos à frente.
- Sim: à tua lista
negra. Para jogar com o teu vocabulário – e porque te respeito – digo: a tua
lista negra.
- Para tirares a limpo a “questão semântica” (ou o viés
dos pressupostos): da lista constam pessoas, palavras, lugares, coisas, livros,
filmes, músicos, maneirismos e modismos, costumes, crivos que ficaram
emoldurados numa página do passado.
- E nem assim deixa
de ser uma lista onde perfilam os teus ódios. Os ódios não se dirigem apenas a
pessoas.
- Discordo. Um ódio – palavra tão forte – só pode
ter pessoas como reverberação. O resto,
o que é exterior aos sujeitos, é do domínio das irritações.
- Podemos passar horas
a discutir a ontologia das listas negras com a ajuda da semiótica. Proponho que
avancemos: pressinto que não chegaremos a um mínimo denominador comum de
entendimento.
- E, todavia, não pode ser esse palpite a cercear a
discussão. Só faltava a impossibilidade da discussão por os seus atores anuírem
nas muitas divergências logo na casa da partida.
- Continuamos a
falar linguagens diferentes. Ou cada um está a situar a discussão em planos
diferentes. Voltemos à tua lista negra.
- Não estou à vontade para falar sobre a lista.
- Nesse caso, por
que a mostras a quem estiver nas imediações?
- Foi uma distração. Não era minha intenção fazer
publicidade a algo que reputo tão íntimo.
- Contém coisas
escabrosas? Material não divulgável aos outros, sob pena de saíres arqueado
pelo peso da vergonha?
- Pode ser que seja o caso. Ou não. Pode ser apenas o
direito a guardar dentro de mim assuntos que julgo serem do domínio da minha
intimidade.
- Talvez esteja a
ser intrusivo. Desculpa. Às vezes, não consigo reprimir a pulsão de saber da
vida dos outros. É curiosidade pura; poderiam alvitrar que o meu interesse nos
outros é um desprendimento, a bondade intrínseca para ajudar quem estiver
carente de ajuda. Não é o caso.
- Que não se te imponha a vergasta da autopunição. Não
é preciso tanto.
- Desculpa. Desculpa
qualquer coisinha.
- Eu é que peço desculpa. Não estou preparado para
me expor de tal maneira. A lista negra tem de ficar sob reserva. Sob minha única
reserva. Desculpa se dei a entender, ao deixá-la espreitar na embocadura do
bolso, que queria conversar sobre a lista.
- O que achas do
escândalo do antigo ministro?
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