Fever Ray, “When I Grow Up”,
in https://www.youtube.com/watch?v=4F-CpE73o2M
Dizem: as dores matam-se com
analgésicos. Não convencido com o popular preceito, disparo a interrogação própria
dos insatisfeitos: não tendo os analgésicos o atributo da perenidade, não reavivam
as dores depois de o efeito se dissipar? O analgésico tomado não é curativo. Mete
a dor dentro de um parêntesis, de um temporário parêntesis. E não se acredite
que os cronicamente assaltados por dores se convencem das propriedades
medicinais dos analgésicos: sabem que, na finitude dos seus efeitos, as dores
voltam a tomar conta de tudo. Como o organismo é adaptativo, há de haver uma
altura em que já não se deixa enganar pelo analgésico. As dores não se apagam. Nem
com o medicamento que conseguia adiar as dores até à próxima toma.
Contrapõem os flagelados pela
dor: nada disso interessa. Não interessa saber que a dor fica amordaçada enquanto
for subjugada pelo analgésico. O tempo que conta é o do esquecimento da dor. Não admira
que apenas se interessem se pelo tempo
em que estão sob os auspícios dos analgésicos. Não lhes interessam as acusações
de dependência de substâncias. Dirão: “experimentem
a dor – a dor crónica. E depois digam se não preferem a hibernação dos analgésicos.
Por temporária que seja.”
Não é por acaso que na sapiência (e
na simplicidade desarmante) da língua inglesa os analgésicos são “pain killers”. É uma expressão ardilosa:
a dor não expira. Assim seria se os analgésicos – prestando tributo ao rigor
semântico do idioma inglês – matassem a dor. Primeiro, não a matam; cuidam de a
suspender enquanto perdurarem os efeitos do medicamento. Segundo, há a ideia de
imorredoiro, de definitividade, em qualquer coisa que seja morta. A dor não é
morta; é adiada. Não se sabe a quem dirigir o libelo acusatório: se aos
arquitetos da língua inglesa, de fraca têmpera ao escolherem a expressão
designativa (talvez se tenham ficado por um modesto eufemismo); se aos peritos
que inventaram os medicamentos que apenas suspendem a dor.
O que fazemos com esta dor? Alguém
sugere: “tomamos analgésicos”.
Outros, não convencidos com o fingimento, respondem: “habituamo-nos à dor”. Outros ainda, numa furtiva tentativa de
iludir a binária solução, ensaiam uma alternativa: “aprendemos a gostar da dor. Fazemos dela nosso alimento. A certa
altura, comemos a dor pelas suas entranhas. E a dor deixa de doer”.
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