20.2.18

O que fazer com estas dores?


Fever Ray, “When I Grow Up”, in https://www.youtube.com/watch?v=4F-CpE73o2M    
Dizem: as dores matam-se com analgésicos. Não convencido com o popular preceito, disparo a interrogação própria dos insatisfeitos: não tendo os analgésicos o atributo da perenidade, não reavivam as dores depois de o efeito se dissipar? O analgésico tomado não é curativo. Mete a dor dentro de um parêntesis, de um temporário parêntesis. E não se acredite que os cronicamente assaltados por dores se convencem das propriedades medicinais dos analgésicos: sabem que, na finitude dos seus efeitos, as dores voltam a tomar conta de tudo. Como o organismo é adaptativo, há de haver uma altura em que já não se deixa enganar pelo analgésico. As dores não se apagam. Nem com o medicamento que conseguia adiar as dores até à próxima toma.
Contrapõem os flagelados pela dor: nada disso interessa. Não interessa saber que a dor fica amordaçada enquanto for subjugada pelo analgésico. O tempo  que conta é o do esquecimento da dor. Não admira que apenas se  interessem se pelo tempo em que estão sob os auspícios dos analgésicos. Não lhes interessam as acusações de dependência de substâncias. Dirão: “experimentem a dor – a dor crónica. E depois digam se não preferem a hibernação dos analgésicos. Por temporária que seja.
Não é por acaso que na sapiência (e na simplicidade desarmante) da língua inglesa os analgésicos são “pain killers”. É uma expressão ardilosa: a dor não expira. Assim seria se os analgésicos – prestando tributo ao rigor semântico do idioma inglês – matassem a dor. Primeiro, não a matam; cuidam de a suspender enquanto perdurarem os efeitos do medicamento. Segundo, há a ideia de imorredoiro, de definitividade, em qualquer coisa que seja morta. A dor não é morta; é adiada. Não se sabe a quem dirigir o libelo acusatório: se aos arquitetos da língua inglesa, de fraca têmpera ao escolherem a expressão designativa (talvez se tenham ficado por um modesto eufemismo); se aos peritos que inventaram os medicamentos que apenas suspendem a dor.
O que fazemos com esta dor? Alguém sugere: “tomamos analgésicos”. Outros, não convencidos com o fingimento, respondem: “habituamo-nos à dor”. Outros ainda, numa furtiva tentativa de iludir a binária solução, ensaiam uma alternativa: “aprendemos a gostar da dor. Fazemos dela nosso alimento. A certa altura, comemos a dor pelas suas entranhas. E a dor deixa de doer”.

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