8.2.18

Avenida Istambul


Conan Osiris, “Celulite”, in https://www.youtube.com/watch?v=AZbBhV1MNxY    
A bruma do entardecer desce sobre as ruas apinhadas. Ao longe, em murmúrio, um canto exótico entoado durante breves minutos. Os rostos que se cruzam na avenida são uma amostra do mundo. Perto está o bazar: uma constelação de cores e aromas e gente e palavras sobrepostas que se fundem num postal. Ouve-se idiomas ininteligíveis, numa cascada de dizeres impronunciáveis que, todavia, não agridem o pensamento – renovam-no.
Entre as ruas mais largas (e mesmo assim, estreitas) onde se acotovelam os mercadores, há ruelas que as atravessam na transversal. São baças, as paredes desbotadas, o lixo amontoado no chão. Não há esgar de arrependimento, nem se evaporam impressões desagradáveis pela imundície e por tais ruelas se insinuarem lugares não recomendáveis. Numa dessa ruelas, certamente tráfico de drogas, a crer na pose comprometida dos intervenientes, de quem nem se chega a discernir o rosto. Mais à frente, uma mãe traz consigo a numerosa prole: cinco crianças todas de mão dada, todas meninas, todas envergando o véu imperativo. A mulher não dirige o olhar para o chão, contrariando a narrativa ocidental sobre a humilhação convencionada a que as mulheres se submetem. Segue ufana, talvez por causa da numerosa prole, talvez orgulhosa devido a qualquer outro estatuto.
Um polícia distraído arrasta-se vagarosamente pelas ruas cheias do bazar. Deve ter instruções para estar de atalaia aos meliantes (os guias turísticos advertem que é elevada a probabilidade de furtos de posses dos turistas deslumbrados e, portanto, tão distraídos como o polícia de turno). Entra-se num quadrante do bazar dominado pela gastronomia. Os odores são ainda mais fortes. As especiarias em catadupa sobrepõem-se, no que ao odor diz respeito, aos demais odores que se interpenetram vindos das outras ruas. À saída do bazar, a roupa está em tais preparos que parece ter sido submergida numa infusão onde se entaramelam todas as especiarias, cozinhadas ou cruas, e os demais cheiros que parecem ter sido arrancados às cores avivadas do bazar.
Na larga avenida, o trânsito não obedece a regras. Os carros circulam por todos os lados, uns no sentido dos outros, sem chegar sequer a haver contramão. Não há acidentes. Deve ser um milagre divino – e por isso, os tantos chamamentos para as orações audivelmente assinalados pelos proeminentes minaretes. Um grupo de homens mal-encarados toma conta de um dos lados da avenida. Uma dúzia deles. As pessoas atravessam a rua mal intuem sua presença. Pressente-se a sua má rês. Estava errado. Enchi-me de coragem e, atravessando velozmente a avenida, com cuidado para não ser presa de um ensandecido condutor, interpelei um dos homens. Disse-me, com voz efeminada, que eram empresários do ramo da moda.
E eu, afinal, não tinha saído de casa.

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