Conan Osiris, “Celulite”,
in https://www.youtube.com/watch?v=AZbBhV1MNxY
A bruma do entardecer desce sobre
as ruas apinhadas. Ao longe, em murmúrio, um canto exótico entoado durante breves
minutos. Os rostos que se cruzam na avenida são uma amostra do mundo. Perto está
o bazar: uma constelação de cores e aromas e gente e palavras sobrepostas que
se fundem num postal. Ouve-se idiomas ininteligíveis, numa cascada de dizeres impronunciáveis
que, todavia, não agridem o pensamento – renovam-no.
Entre as ruas mais largas (e
mesmo assim, estreitas) onde se acotovelam os mercadores, há ruelas que as
atravessam na transversal. São baças, as paredes desbotadas, o lixo amontoado
no chão. Não há esgar de arrependimento, nem se evaporam impressões desagradáveis
pela imundície e por tais ruelas se insinuarem lugares não recomendáveis. Numa dessa
ruelas, certamente tráfico de drogas, a crer na pose comprometida dos
intervenientes, de quem nem se chega a discernir o rosto. Mais à frente, uma mãe
traz consigo a numerosa prole: cinco crianças todas de mão dada, todas meninas,
todas envergando o véu imperativo. A mulher não dirige o olhar para o chão, contrariando
a narrativa ocidental sobre a humilhação convencionada a que as mulheres se
submetem. Segue ufana, talvez por causa da numerosa prole, talvez orgulhosa
devido a qualquer outro estatuto.
Um polícia distraído arrasta-se
vagarosamente pelas ruas cheias do bazar. Deve ter instruções para estar de
atalaia aos meliantes (os guias turísticos advertem que é elevada a
probabilidade de furtos de posses dos turistas deslumbrados e, portanto, tão
distraídos como o polícia de turno). Entra-se num quadrante do bazar dominado
pela gastronomia. Os odores são ainda mais fortes. As especiarias em catadupa
sobrepõem-se, no que ao odor diz respeito, aos demais odores que se
interpenetram vindos das outras ruas. À saída do bazar, a roupa está em tais
preparos que parece ter sido submergida numa infusão onde se entaramelam todas
as especiarias, cozinhadas ou cruas, e os demais cheiros que parecem ter sido arrancados
às cores avivadas do bazar.
Na larga avenida, o trânsito não
obedece a regras. Os carros circulam por todos os lados, uns no sentido dos
outros, sem chegar sequer a haver contramão. Não há acidentes. Deve ser um
milagre divino – e por isso, os tantos chamamentos para as orações audivelmente
assinalados pelos proeminentes minaretes. Um grupo de homens mal-encarados toma
conta de um dos lados da avenida. Uma dúzia deles. As pessoas atravessam a rua
mal intuem sua presença. Pressente-se a sua má rês. Estava errado. Enchi-me de
coragem e, atravessando velozmente a avenida, com cuidado para não ser presa de
um ensandecido condutor, interpelei um dos homens. Disse-me, com voz efeminada,
que eram empresários do ramo da moda.
E eu, afinal, não tinha saído de
casa.
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