26.2.18

A culpa e a responsabilidade (ou a culpa é da responsabilidade)


Throwing Muses, “Not Too Soon”, in https://www.youtube.com/watch?v=RZI-FTcFtn8    
Um pouco diletante, os tiques eruditos a preceito para passar a imagem de intelectualidade não bolorenta, era capaz de ser a síntese entre o burguês (embora disfarçado) e o homem que mantinha as referências todas das revoluções – das justas revoluções, as que se amotinavam contra a opressão dos ricos. Por isso, burguês disfarçado: não podia dar o braço a torcer, os meios que frequentava continuavam tributários do marxismo e da luta de classes. Também por isso, os burgueses hábitos (maldito hedonismo que entrava em choque frontal com os dogmas) eram frequentados em segredo.
As contradições internas atropelavam a desarmonia em que decaía a coerência (no fundo, a incoerência). Ele via a coerência sumir-se num fino fio que se perdia à medida que os prazeres interiores, inconfessáveis perante os da mesma casta, transgredia a ortodoxia. Não se considerava um pós-moderno. Preferia estar um passo atrás, na maré da modernidade. Já chegavam outras consumições. Não precisava da tirania do pensamento encavalitado em sucessivos poréns, em calafrios que o torturavam de cada vez que a teoria esbarrava na prática (e de como os fúteis prazeres burgueses tinham um apelo irrefreável).
Talvez por isso, moderara a sede de protagonismo. Moderara as intervenções em público, remetendo-se a um perfil também modesto. A páginas tantas, nem sabia se a hibernação se devia à miríade de hábitos burgueses que não conseguia recusar, ou se era por ter ficado para trás, não trepando a árvore do pós-modernismo. Talvez fosse isto tudo, por junto. O atávico modernismo era propositado. Assim como assim, fora suplantado pelos peritos que sufragavam novas correntes, o pós-modernismo; a esses, o palco. Ele ficava para segundas núpcias no mercado dos eruditos que marcavam a agenda dos progressistas. Era fácil decair nos incorrigível mundano burguês sem que alguém fosse pedir contas, sem que se prestasse a um julgamento sumário, acusado de um desvio sinónimo de traição.
O que podia fazer? Os instintos ecoavam, telúricos, nas veias abertas à perfídia dos frívolos prazeres alojados num universo que sempre detestara. Era mais fácil torcer o braço e aceitar os prazeres burgueses, sem alguma vez o confessar a ninguém (ninguém!), do que sentir-se pária entre os seus. Se imaginava a culpa que seria imputada ao serem descobertos os prazeres secretos, não imaginava suportar a responsabilidade.
A culpa não era sua. Era do insuportável peso da responsabilidade. Ele, como mero adereço, talvez podre pela heresia não assumida, peça insignificante na imensa roda dentada do mundo, não conseguia assumir a infâmia.

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