2.7.18

Cortinas transparentes


Slowblow, “Hamburguer Cemetary”, in https://www.youtube.com/watch?v=sc3V6ZpAHzI
Há nos nórdicos uma transparência que poderia não fazer sentido se fosse lembrado o rigor da invernia que os assola. 
(No pressuposto – da maioria, mas não consensual – de que o inverno é um contratempo.) 
Os nórdicos não precisam de esconder as casas de outros olhares. Não usam cortinas. Há um húmus civilizacional que freia o olhar de fora para dentro. Pressupõem que olhares intrusos não espiolham as suas casas, porque quando estão no exterior não precisam de invadir a privacidade dos outros. A cortinas são inúteis. Um adereço que nem sequer chega a ter propósitos decorativos. Há um respeito escrupuloso pelo espaço reservado de cada um – e o interior da casa é, a este respeito, um altar. As janelas são as suas próprias cortinas. Através destas cortinas transparentes, não há espaço para a intrusão. Em vez do anátema da invasão do espaço que pertence aos outros, os limites são observados e respeitados. Não admira (e agora estou a especular) que não haja a propensão para o espetáculo gratuito em forma de programas de televisão que passam a pente fino a vida quotidiana dos intérpretes, ou para revistas cor-de-rosa. As pessoas não têm inclinação para ovoyeurismo– nem o que se exibe de dentro para fora, nem o que lança âncora do exterior e estilhaça as paredes da intimidade.
Na mesma esteira, foi-me dado a observar, em estadias em terras nórdicas, que os nativos têm desprendimento em relação aos seus corpos. Não há neles e nelas constrangimento em se despojarem de roupas em lugares públicos, para mergulharem num lago, ou para se deslocarem até à sauna mais próxima. Fazem-nos com descontração. Admito: causa-me estranheza, a descontração e a transparência (em sentido literal, depois do desnudamento). São os laivos do caldo cultural e da demonização do corpo nu, ainda legados do catolicismo castrador que vem da convivência desde os bancos da escola. A banalização do corpo dos nórdicos (sem conotação negativa) é o contraponto desta lente castradora.
Toda esta transparência parece paradoxal se vier à memória o rigor da invernia. Com o ar gélido do inverno, as pessoas sentem a convocatória do abrigo, das muitas camadas de roupa para se protegerem dos rigores da estação que se demora. Deviam esconder as casas dentro de mais uma camada protetora na forma de cortinas (não fosse dar-se o caso de o isolamento térmico permitir que andem nus dentro de casa, mesmo no inverno). Às vezes, as explicações são servidas numa grelha de análise que vira o estabelecido do avesso: não admira, a transparência nórdica (na ausência de cortinas, na nudez desembaraçada – e noutros domínios: na maior propensão para a lisura de procedimentos, na maior aversão à corrupção); é o oposto das muitas camadas de roupa em que se escondem para fugirem do inverno agressor. Uma certa forma de autonomia – e uma válvula de escape. 
Por esta bitola, não admira que povos meridionais medrem no oposto: precisam de cortinas (e baças, de preferência), têm vergonha da nudez própria, perturbam-se com a nudez dos outros – e o resto. Estão habituados a conviver com a canícula e têm invernos moderados, precisam do oposto do que levam na maior parte do tempo: muitas camadas para se esconderem dos outros, em vez de corpos aligeirados de roupa. E quem muito se esconde, tem a transparência na conta do olvido. 

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