6.7.18

Prova cega


Os Poetas, “Autografia”, in https://www.youtube.com/watch?v=n37ftKtJ75E
(...) Conheço a tua voz como os meus dedos (...)in Mário de Césariny, Autografia.
Não é o medo que transige. Não é a noite que açambarca a luz que perfilha a descoragem. Os vultos adejam e não há nada que os possa demover. Mudança de plano: desestimam-se os vultos sombrios, deixa-se-lhes o luto que vestem nos pastos inférteis que habitam. 
A paisagem faz-se pela espessura dos nossos dedos. Desenhamo-la. Fechamos os olhos, e desenhamos a paisagem. Com as cores que pusermos ao alcance das mãos. Sempre de olhos fechados, na combustão máxima embebida na empreitada. Não cedemos à tentação de abrir os olhos para ver a obra a meia-haste. Estamos decididos: a empreitada prosseguirá até ao fim na ombreira dos olhos em seu véu denso. É uma prova cega que não recusamos. Pode demorar. Podemos interromper e retomar o desenho da paisagem mais tarde. Mas não deixaremos o olhar que se entreabre espreitar na paisagem desenhada enquanto ainda estiver a meia-haste. 
Se for preciso, bebemos a inspiração algures – no excerto de um poema: “quando amo imito o movimento das marés/(...) sou, por fora de mim, a minha gabardina/e eu o pico Evereste.” E depois ascendemos, como se fosse uma provação que não recusamos, desde o copo fundo, e fazemos da vontade a nossa água boreal. Sabemos que somos ascetas do mundo na sua condição irreal, pois do real não cuidamos por ser desamor de que não temos curadoria. Às cegas, como se fosse furtivo o conhecimento e, todavia, na síntese da prova cega se condensasse a sabedoria num espaço exíguo – o espaço onde só cabem os corpos nossos. 
Confia em mim. Podemos seguir todo este caminho às cegas. Os sentidos cuidam de estreitar os limites por onde nos movemos. Sem acidentes de percurso. No leve bater das asas, como se fossemos argonautas largados num voo picado. Como se nesse voo dessemos conta que não levamos paraquedas e, contudo, temos em nós o arnês preciso para a aterragem suave. Tudo por dentro de uma prova cega, num sonho inconfundível, ou então no mar espesso que trazemos às mãos, confundido com um sonho que se transfigurou. 
Confia em mim. Pois “(...) para dizer-te tudo/dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar/estou/em franca ascensão para ti o Magnífico/(...) e que o homem-expedição de que não há notícia nos jornais/nem/lágrimas à porta das famílias/sou eu, meu bem, sou eu/partido de manhã, encontrado perdido entre/lagos de incêndio e o teu retrato grande.

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