30.7.18

Ninguém é uma ilha


Idles, “David Nadelko”, in https://www.youtube.com/watch?v=QkF_G-RF66M
(Mote: a t-shirt do protagonista do videoclip)
Que estultícia maior do que a sanha dos que perseguem o outro, apenas porque o outro assim se identifica e parece que, por ser o outro, amanhece em transgressão. Os que assim se tomam como penhores de uma identidade, como se a convivência com o outro pudesse ser lesiva da venerável idiossincrasia, medram num pensamento mesquinho. O outro não é o fautor de uma teia conspirativa com o propósito de dissolver os traços da identidade dos que o recebem na sua terra. Não lhes é dado raciocinar que se o outro tivesse esta aspiração, a sua própria identidade seria objeto de fusão, ao menos parcial, com a que é corporizada pelos que o hospedam. 
Os cultores da estanquicidade das identidades estão equivocados por duas ordens de razão. Primeiro, mesmo que seja para seu desprazer, as fronteiras esbateram-se, deixaram de ser barreiras que segmentam as identidades. Já não vivemos afastados dos outros. Eles viajam com facilidade, como nós viajamos com facilidade até aos seus domínios. O turismo massificado é um avanço cultural sem precedentes. À medida que conhecemos outras terras e “outros outros”, enriquecemos a bagagem cultural. A identidade que nos é subcutânea expõe-se a influências de outras identidades. E nem é preciso sairmos do canto onde teimamos (alguns) em não sair: a música, os filmes, o teatro, a literatura, os costumes embebidos no aburguesado consumismo, fazem o favor de moldar a identidade, que perde os seus traços de exclusividade identitária.
Segundo, em muitos casos não é possível afirmar a homogeneidade da identidade, pois ela espartilha-se na diversidade de muitas idiossincrasias regionais. Em muitos desses casos, um elemento que afirma a riqueza da identidade amalgamada é a diversidade das fontes regionais de identidade. Convivem em paz, sob o chapéu de uma nação onde se albergam as nações que afirmam a sua identidade específica. Considerar que a entrada dos outros e a sua quotidiana convivência connosco constitui uma ameaça (à nossa identidade) é um logro, a expressão da incompreensão do mundo moderno e uma manifesta prova de má vontade.
O húmus cultural que nos diferencia do outro não pode ser a origem das desavenças que firmamos em relação a ele. Nem fazem sentido as desconfianças dirigidas ao outro, como se fosse um intruso com o único propósito de boicotar a nossa identidade. Não somos ilhas. Nem nós, nem os outros que migram e passam a ser existência quotidiana no nosso espaço. Recusarmos, como princípio de ação, a hipótese de ficarmos mais ricos com a exposição aos outros, da mesma forma que negamos a possibilidade de os outros incorporarem elementos da nossa identidade, é uma tacanhez. O problema, é que essa tacanhez se apropria dos males de duas dimensões do tempo: do pretérito, pois a exclusão dos outros e a respetiva perseguição estiveram na origem de guerras sangrentas; e do porvir, pois o reacender de animosidades contra os outros passa uma esponja nos ensinamentos da História, correndo-se o risco de a má História, a que envergonha a humanidade, se voltar a repetir.

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