9.7.18

O escanção dos sentidos


Underworld & Iggy Pop, “Get Your Shirt”, in https://www.youtube.com/watch?v=VrCa_PTu0t0
Naquela altura em que o estuário se alarga e o rio toma conta de terra copiosa, torna-se mais difícil conter o caudal. Torna-se mais difícil saber o paradeiro dos sentidos, agora que têm mais espaço para se albergarem e o estuário abundante processa a sua lenta dissolução no largo rio. É como perder a peugada ao substrato incorpóreo que se julgava incindível: às vezes, o deslumbramento das coisas levianas tem o custo do esvaziamento do que sobra para além das coisas que induzem essa atração. 
Queria estar na posse de uma bússola poderosa que nunca aceitasse a desorientação. Queria saber que nunca estaria perdido em lugar algum. Queria garantias que a matéria involúvel, a substância que dá nome à alma, não seria objeto de desgaste nem de perda. Não seria subsumível à indiferença das moléculas da água transportadas pelo caudal e que, em vez disso, seria um diligente tutor do caudal. Queria sentir-se um pouco como um dique com capacidade para reter um volume de água que achasse necessário ao seu aforro futuro. Para amanhã não se tornar refém da erosão.
O escanção dos sentidos configurava a atração pelo abismo do devir indecifrável. Representava-se a si mesmo como testa-de-ferro das suas convicções. Era um esteio de certezas e um aprumado cuidador do tempo vindouro. Não recusava conselhos nem juízos sobre comportamentos exteriores, fossem pedidos ou não. A vaidade, cimentava-a na ufana condição de si mesmo. Sabia-se exemplar. Não o dizia abertamente (a imodéstia é só aceitável, e com medida, para os que se distinguem e constituem um escol), mas deixava-o subentendido nas entrelinhas. Ao ser escanção dos sentidos – dos seus e, a pedido, dos outros – era credor da sociedade. Aos predestinados (interiorizava, com generosidade), cabe a contemporização dos desalinhados dos sentidos. 
Um dia acordou e sentiu-se estranho. Não sabia porquê. Tinha sido uma boa noite de sono. Não tinha sido assaltado por sonhos medonhos ou por sonhos bizarros (temia mais os segundos que os primeiros). Não sabia onde estava. Teria perdido a bússola requintada. Procurou no quarto, em toda a casa, até nas ruas limítrofes – como se algo imaterial, como a bússola interior de escanção dos sentidos, pudesse revelar-se ao olhar. 
Habituou-se à transfiguração de estatuto (dantes, considerava-o um estatuto). O desprendimento das coisas mundanas era preferível à prisão constante de quem tinha tantas responsabilidades como escanção dos sentidos. Sentiu uma liberdade que não sabia conhecer. Começou a descobrir o doce sabor dos paradoxos: o seu paroxismo era orgulhar-se de já não ser escanção dos sentidos e saber-se sem lugar sua pertença. E deixou de se sentir policiado por si mesmo.

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