5.7.18

Sorvete de rosmaninho


Ryuichi Sakamoto, “Bibo No Aozora”, in https://www.youtube.com/watch?v=SsKlf_x9zRE
Às cautelas pretorianas: desenganem-se os precatados, os diligentes autores da habitualidade, que há mistérios sem paradeiro que têm o proveito de estilhaçar as vossas cautelas. Depois, órfãos de um plano (pois é sempre preciso ter um plano – asseveram com a mesma certeza com que convocam imperativos categóricos), não sabem como hão de trepar às paredes para saírem do abismo cuja possibilidade não contemplaram. Dirão sempre: se malogra o plano A, há um plano de contingência, vários planos de contingência para o caso de um qualquer plano de contingência não suprir as responsabilidades. Dirão: ele há tantas letras no alfabeto que múltiplos são os planos de contingência. Um deles há irromper com a sua aptidão, retomando a habitualidade consagrada. 
Eles não sabem o que é a improvisação. Ou temem-na. Pois improvisar dispensa o estirador onde milimetricamente se costuram os planos que têm de estar à mão de semear. Nunca hão de saber que os maiores proveitos medram da improvisação. Da improvisação sem ser forjada, pois uma improvisação ardilosa é contrafeita. Um dia pontuado por um acontecimento inesperado, uma música que rompe com o rame-rame da escuta, uma peça de teatro telúrica, um ângulo desconhecido que tempera uma atitude, a gastronomia que caldeia ingredientes improváveis, a ideia de que a morte não é uma sentença, a impressão de que as elegias são uma ofensa ao elogiado e ao tempo consagrado – e o mais que vier no bornal do improvisado, contra as medidas apertadas que delimitam os corredores do habitual e impregnam de rotina a existência assim caída em presságio de decadência.
 Outros exemplos da contrafação das marés: a desmoda que cultiva a provocação, contra as baias do legitimado pela multidão; uma história contada do epílogo para o prolegómeno; um vício depressa desligado da corrente; a voragem do tempo e a sua infecunda intransigência, como se não fosse profícuo ficar estacionado diante do tempo apenas a vê-lo passar pelos olhos, sem mais atuar; um lugar nunca demandado e que entra no mapa das memórias; um autor dantes desdenhado; o peito sem algemas ao que por ele não é conhecido; uma palavra resgatada ao dicionário; o sorvete de rosmaninho.
No auge da memória, o segredo é ter o ouro à mercê – o ouro arrematado pelas próprias mãos, desfazendo o pulcro invólucro que açambarca o jogo da diferença. Arranhando uma guitarra, mesmo de música sendo amador. A música, fiel depositária de uns versos que podem muito significar, ou apenas tutelar a sagacidade das palavras juntas num jogo semântico. Sem perder de vista o sorvete de rosmaninho.

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