23.7.18

Entre o céu e a terra, o império de todos nós


Kamasi Washington, “Street Fighter Mas”, in https://www.youtube.com/watch?v=LdyabrdFMC8
Uma certa poeira, decerto cósmica, enovela-se no olhar dos crentes. Desfiando manobras circenses, procura-se a doutrinação dos jovens: “Know Jesus, find peace” e “Don’t panic, just pray”, anunciam, em letras garrafais e cores luxuriantes, t-shirtsde voluntários num acampamento para adolescentes. Não há de ser muito diferente do acampamento dos jovens do Bloco de Esquerda, com a exceção que estes últimos não dedicam parte do dia a preces nem dizem acreditar em deus; fora disso, é um culto, com o inerente penhor das almas que se adestram nos ensinamentos de gurus arregimentados.
Os doutrinadores das almas ensinarão: deus tudo comanda; deus é a bondade permanente. Todo o mal do mundo é produto da vontade dos homens, que se desviam dos mandamentos divinos. Nunca consegui entender este desligar entre a omnipotência de deus e a vontade dos Homens, que se autonomiza quando o que dela resulta é a guerra, a destruição, a vileza, a maldade, e outros cometimentos que engrossam a fileira dos deformidades que se pespegam à pele dos Homens. Isto é a confissão das limitações de deus. Admitir que deus tem limitações é o mesmo que negar a sua existência. Ou se deus continua a existir e todos os maus exemplos da História da humanidade continuam a marcar o calendário, como o marcaram no pretérito, é sinal que deus não consegue ter mão nos muitos lados perversos do Homem – o que desagua na mesma conclusão: a limitação de deus e, por aí, a sua negação. 
Vem isto a propósito do primeiro pregão das t-shirtsdos jovens voluntários no acampamento: “Know Jesus, find peace.” Para alguém se embeber neste pregão é preciso esquecer o rol de guerras feitas em nome de deus, ou das diferentes visões que diferentes pessoas têm de deus e por causa da necessidade de imporem a sua visão à dos rivais. Como pode deus (se existisse) tolerar que haja Homens a fazer guerras em seu nome? Como se compagina esta predisposição bélica, merecedora do devido assentimento divino, com a incomensurável bondade atribuída a deus? Como pode uma guerra ser feita em nome da bondade? Sobram duas hipóteses de explicação – e nenhuma delas abonatória da posição de deus. Ou deus não é bondoso, o que faz ruir pela base todo um argumentário que serve de alicerce à metafisica (e às crenças). Ou deus não consegue dominar todas as ações dos Homens, não tendo poder para os demover de se alistarem em guerra espúrias. Seja qual for a grelha de leitura, a conclusão é a mesma: deus esbarra em limitações incompatíveis com a sua posição divina, o que não é bom presságio para os que anunciam o seu império.
Depois destas décadas todas, continuo preso a um profundo ceticismo quando deparo com religiões e respetivos catecismos, com a proibição de questionamentos como húmus dos dogmas, por sua vez matéria-prima para uma humilhante (humilde, corrigem os crentes) anulação dos Homens perante o deus em que creem. Continuo sem entender as pontas soltas semeadas pelas liturgias em nome de deus. Continuo a não perceber que os que pregam a palavra de deus tenham urgência em incutir uma obediência cega e acrítica aos mandamentos, como se acreditar em deus implicasse um despojamento do pensamento, ou o seu esvaziamento. 
Se deus é isto, as pessoas não são nada. Não me parece que deus (se existisse) tolerasse tamanha soberba e edificasse um muro tão inacessível entre ele e os homens que o seguem. Talvez por isso, e em dúvida, aconselham a que os crentes rezem se forem tomados de assalto pelo pânico (o pregão da segunda t-shirtdos jovens voluntários do acampamento). Como se fosse uma quimera e as preces tivessem o condão de tudo resolverem. 
É pena que as guerras, as contrariedades, as vicissitudes, os malogros, as angústias, a maldade, a vileza, a arrogância, a mentira e muitas outras fontes de pânico insistam em ter tanta visibilidade. As rezas só podem uma anestesia.

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