18.7.18

Se tivesse asas


At Freddy’s House e Cavalheiro, “Quero é viver” (cover de António Variações), in https://www.youtube.com/watch?v=ApbrdzlBHbU&list=LLRLcHvidG6BocfU7CHznhag&index=8&t=0s
Se tivesse asas não perdia um minuto com o sono. Atirava-me ao mar e recolhia-o sob minha proteção, todo ele aninhado em minhas mãos. Destruía a soberba militante com golpes de humilde reverberação. Colhia o pólen macerado nas portadas da madrugada e dele fazia um néctar singular, quimérico. Cantava as canções eternas ao ouvido da minha amada enquanto retínhamos o ocaso em nosso olhar.
Se tivesse asas, descia as cortinas baças sobre os beócios, os contumazes desfazedores das palavras em sua singularidade. Ajuramentava o desejo máximo na urdidura do destempo. Combinava cafés com amigos de que perdi vestígio. Desarmadilhava os preconceitos que insistem em minar-me pelo interior. Pedia favor ao céu para ser espelho fidedigno do mar, e eu tutor de ambos. Recolhia em asilo os impostores de si mesmos, até saberem de mote próprio que são afortunados pela comiseração de que não precisam.
Se tivesse asas não queria saber do amanhã. Não perfilhava o pudor incandescente que obriga o rosto a fechar-se às possibilidades. Não tirava a medida às distâncias, as asas incansáveis sempre preparadas para devorarem as milhas que me separem de um destino qualquer. Emparelhava o sentido equinócio com o verso noturno, desfazendo o medo que da noite tive. Renegava pesadelos com a espada desembainhada na combustão da vontade. Remediava o pesar com trovas sobre o cais fundido. Perguntava às divindades sem rosto se tinham existência, ou se era apenas teimosia minha (não esperando réplica, nem murmurada).
Se tivesse asas desenhava os meus próprios mapas. Cortejava os cabos cerrados despenhando-se sobre o mar adulterado. Emoldurava os limites das montanhas e os caudais dos rios, com uma visão simultaneamente de conjunto mas com capacidade para reter os segredos escondidos nos recantos inacessíveis.  Esquartejava em múltiplos pedaços a sobranceria dos que se passam por eruditos, deixando-os no mesmo invertido pedestal da turba que desdenham. 
Se tivesse asas, partia sem ter a certeza de a algum lugar chegar. Voava e voava, numa errância militante, sublime. Não teria o apelo de portos protetores nem de atalaias em esboço. Seria ao mesmo tempo a antítese de um anjo e o anjo de mim mesmo (apenas, e sem revelação exterior). Seria senhor de terçar a paz sobre todas as terras. Denunciaria os embustes que se esteiam nas religiões. Aprovaria os mapas por mim desenhados enquanto perdurava a demanda na ausência de sono. Ao mesmo tempo, se tivesse asas, traduziria os sonhos em bases concretas, tangíveis, levemente acetinadas, em forma de poemas. 
Se tivesse asas, tudo seria falado e escrito em poesia. E eu vivia – vivia sem parar, até poder dizer que era vida por dentro da vida.

Sem comentários: