27.7.18

Perdidos e achados


Shame, “Concrete”, in https://www.youtube.com/watch?v=_MVLqZpnwow
Num estio sem freio, onde tudo se perde e tudo se acha, mas depressa o que se acha fica órfão de detentor, remetido outra vez ao lugar ermo de algo que está perdido. Num esteio frágil, os remendos do tempo não chegam para convencer os desapossados de terem tomado mão da coisa perdida. Perguntam: e esta é a mesma coisa que dei como perdida? Não tendo sido devidamente inventariada, sobeja a interrogação excruciante – tanto mais pungente, quanto maior for a desconfiança congénita dos que protestaram o objeto perdido. 
O mercado onde se faz o encontro de solicitações de perdidos e manifestações de achados não tem essa serventia. Limita-se a fazer o encontro dos perdidos e dos achados. Depende da boa vontade de quem toma conhecimento do objeto perdido e das solicitações de objetos perdidos por seus legítimos donos. Para tornar o assunto mais complexo, muitos dos objetos perdidos não só não foram inventariados por seus legítimos detentores, como não são objeto de registo de propriedade. Não há como fazer prova de ser seu legítimo detentor. Alguns sinais podem ser convocados para a prova: uma acareação entre o objeto achado e quem o reclama, com o seu penhor a demandar o reclamante sobre algumas características que identificam o objeto antes de o mostrar. 
Houve uma vez que um homem se entregou aos bons ofícios dos perdidos e achados. Abeirou-se do balcão dos perdidos. Depois, em silêncio, olhou para o lado direito, onde se situa o balcão dos achados. Ficou mudo durante uns minutos, perante a indiferença dos funcionários (habituados às lides, só se dirigem aos utentes quando são por estes interpelados). O homem, de meia-idade, rosto cansado, olhar perdido numa lonjura difícil de quantificar, um olhar melancólico, exibindo sinais visíveis de descuido (o cabelo, a barba e as roupas imundas, as unhas nauseabundas), parecia perdido e não sabia se o balcão dos perdidos ou balcão dos achados era o local certo. Com o tempo a contar e perante a hesitação do homem, alguns utentes passaram à frente. A certa altura, deu um passo em frente, inclinando-se para o lado do balcão dos perdidos. Os funcionários do lado de lá do guichetjá se tinham apercebido da hesitação. Sem terem falado uns com os outros, tinham adivinhado que o homem haver-se-ia de decidir pelo balcão dos perdidos. Ele era o exemplo acabado de um perdido. Estaria nos perdidos e achados para comunicar que estava perdido de si mesmo?
Em vão. O homem deu mais outro passo na direção do balcão dos perdidos mas, à última hora, recuou. E à medida que recuava, encaminhando-se para a saída dos bons ofícios dos perdidos e achados, vociferou: “Não pensem que estou perdido! Se tinham dúvidas em coro com as minhas, dissipei-as agora. Não consegui comunicar que estava perdido no balcão dos perdidos. Acabei de descobrir que me reencontrei no âmago desta perdição. Posso estar esquecido de quem fui. Do lugar a que pertenço. Posso até ter-me esquecido de todo o pretérito que foi meu património tangível. Era disso que precisava. Perder-me, para me sentir achado por dentro da errância.” 
Partiu sem deixar vestígios, no colo da indiferença dos funcionários dos perdidos e achados, que prosseguiram com as rotineiras lides.

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