29.11.19

A pança do papagaio


Propaganda, “Dr. Mabuse”, in https://www.youtube.com/watch?v=px4xHQd9h14
Prosápia. Discurso, abundante, que condensado se reduz a um pouco mais do que nada (em sendo usado critério generoso). Um centro do mundo, contrariando as leis da física e o desempenho da mediocridade. O papagaio faz o que sabe fazer melhor: pa-pa-guei-a. Ninguém o avisou que o papaguear não está em alta na bolsa dos predicados.
O espelho está belo. O espelho; não é o que o espelho reproduz quando a imagem do papagaio aparece à frente. A confusão de juízos prova a ausente lucidez, ou um incorrigível apedeuta que não sabe interpretar o que lhe chega aos sentidos. Interioriza: bela é a imagem reproduzida pelo espelho. A sua imagem. O espelho é uma matéria inerte, que só ganha vida quando um ser vivente se oferece ao espelho para que este prove a sua serventia. Às vezes – convinha que o papagaio soubesse – é a matéria inerte que corporiza a formosura. Isto a partir do pressuposto, ainda à espera de prova cabal, que a formosura traz o mundo pela trela.
O papagaio, contudo, disfarça a pança. Ou melhor: disfarça o olhar que às vezes descai sobre a proeminente pança. Está convencido que possui uma silhueta invejável, como se estivesse à disposição das passerelles onde a moda desfila nos corpos dos invariavelmente maldispostos manequins. Está convencido do seu elevado estalão intelectual, quase erudito. Há um mundo a percorrer o imaginário do papagaio e o mundo lá fora. E um enorme hiato a distanciar as duas mundivisões.
Do alto da sua imaginada posição centrípeta, o papagaio imagina-se pajeado. Não interessa que o séquito não seja numeroso. Contenta-se com a existência de um séquito, a prova de vida da sua centrípeta posição. Às vezes, a atenção dos outros é convocada pelo trunfo da vitimização. Muita gente comove-se com os desafortunados que assim se apresentam. Porventura, por solidariedade de casta: serão os mesmos que não hesitam em papaguear o papagaio se for a sua vez de se considerarem vítimas do ultraje, da infâmia, de perseguições infundamentadas, ou de injustiças só remediadas se uma vaga de fundo, com a ajuda do clamor popular, demover o imponderado fautor da injustiça.
Talvez seja a pança que impede o papagaio de interpretar o mundo fora da sua insólita construção alucinante. Como se tudo no universo concorresse a favor dos propósitos do papagaio. É a pança mental que previne a hermenêutica a preceito. 
Ele há gente que tropeça nas armadilhas que julga tecidas para apanhar os outros em falso.

28.11.19

Carrossel (short stories #177)


Django Django, “Default”, in https://www.youtube.com/watch?v=DDjpOrlfh0Y
          Como tudo começa – como tudo começou: o arbítrio jogado contra as paredes caiadas de equidade. À espera de um sinal – à espera de uma demanda, não de uma resposta. Ao alto e a baixo, as voltas que se repetem: o carrossel. A vida, assim entretecida no invulgar lampejo, espelho refratário que devolve a reprodução de imagens que se reproduzem umas às outras. Como tudo começa: um instinto que se emancipa dos freios da vontade, o instinto jogado contra a teia onde se congemina a vontade. À espera de um atestado que desconvoque os sobressaltos havidos – à espera de um artesão que estabeleça um sismo poderoso, tecendo o epicentro da alma à prova de quase todos os medos. Um socorro discreto, à espera do fim do labirinto: como tudo finda, a incógnita que perpassa as densas camadas da névoa que penhora o entardecer. Não vão às lágrimas as perpétuas comiserações que ameaçam a hipoteca das almas: como tudo finda é uma interrogação em aberto, permanentemente em aberto. A voz insubordina-se contra a quietude do tempo, a macieza que discorre entre os prados lânguidos onde os olhares se demoram no nada. Insubordina-se e, porém, não sabe sobre o que se torna insubmissa. Ninguém sabe se os olhares que se demoram no nada são titulares da lúdica viagem num carrossel montado algures, talvez num prado lânguido perdido no meio de um nada. Parece que o fim se confunde com o começo. O olhar é virado do avesso. Tenta perceber se as coordenadas estão invertidas, para alcançar se o fim não é o começo e o contrário. Demora-se na função, o olhar inquisitivo. Percorre as labaredas que compõem o espaço entre os nós desatados, meticulosamente. Percorre-os como se estivesse montado na sela do mundo, como se fosse entronizada a vontade, cada vez mais imperatriz. No fim, continuou sem saber onde estava o começo e onde começava o fim. Não se deixou tomar pela angústia. Ao menos, sentia-se vivo.

27.11.19

Pergunta de retórica (ou algo mais do que isso): o que separa da extrema-esquerda os meus amigos de direita que se insurgiam contra a extrema-esquerda e agora se enamoraram pela extrema-direita?


DIIV, “Doused” (live on KEXP), in https://www.youtube.com/watch?v=_-3JsOU27Tg
Não gosto deste tempo político. Deste tempo social. Ferve um caldo fétido de radicalização que não é bom presságio. Sabemos, da História, o que acontece quando ferve o caldeirão do radicalismo. Alguns, cada vez mais numerosos, não saberão, pois não se importam com as lições passadas sobre as consequências da radicalização; ou acreditam, ingenuamente, que agora é diferente e a radicalização (de que são intérpretes) é benigna.
Fico ainda menos sossegado quando vejo a deriva radical de uns quantos como (no entender deles) justificada reação à radicalização que se lhes opõe desde a trincheira contrária. À direita, parecia estabelecida a insignificância de movimentos radicais desde o fim da segunda guerra mundial. Os últimos anos testemunharam o recrudescimento de radicais de direita, numa amálgama (populistas, alt-right, nacionalistas, conservadores extremados, tradicionalistas saudosistas, religiosos convertidos à política e políticos contaminados pela religião fanatizada, e extrema-direita pura) que serve de pretexto para que certos sectores que medram num radicalismo oposto protestem um estatuto de “normalização”, consentâneo com o desfazer da imagem de radicalismo que lhes estava colada à pele. À esquerda, os radicais foram passando com alguma condescendência embebida na sociedade, sem o mesmo julgamento a que foram sujeitos os radicais de direita (nazis e fascistas) após o fim da segunda guerra mundial. Agora, que o medo tem o rosto do radicalismo de extrema-direita, a extrema-esquerda quer que reconheçam o seu rosto seráfico.
Tenho amigos que me habituei a ver situados entre a direita moderada e o centro-direita. Nos últimos tempos, em coincidência com a deriva radical à direita, tenho visto alguns desses amigos entusiasmados com movimentos que se afastam da direita moderada e do seu património genético. Vejo-os de braço dado com personagens pouco recomendáveis, com eles farejando políticas que atropelam aquele código genético. Ainda não percebi se esses meus amigos saíram agora do armário, finalmente representados por movimentos de direita radical ou de extrema-direita (quando antes não existiam ou eram irrelevantes), ou se também decaíram na lógica de radicalização que destila dos poros destes movimentos. 
Lembro-me que alguns desses meus amigos se abespinhavam com o radicalismo de partidos e personagens situados na extrema-esquerda. Percebo-os: também me abespinha esse radicalismo e dele tenho medo. O que me diferencia desses meus amigos, é que tanto me intimida o radicalismo à esquerda como o radicalismo à direita. O que me distingue desses amigos, é que estendi o cordão sanitário da extrema-esquerda à amálgama de radicalismos que se entrincheirou à direita. Consigo discernir as diferenças de conteúdo entre os dois géneros de radicalismos. Para mim, contudo, é mais importante ter a lucidez de reconhecer que entre eles não há diferenças metodológicas.
O que me deixa inquieto, é evocar esses amigos no pretérito, vê-los furiosos com a ostensibilidade do radicalismo alojado na extrema-esquerda, vê-los vaticinar sobre o mal que sobre nós se abateria caso uma destas extremas-esquerdas (ou a sua coligação) nos governasse, o mal que daí resultaria para as liberdades e para os valores com que nos habituamos a conviver como esteios de um regime político todavia repleto de imperfeições. Agora, vejo-os a perfilhar ideias que se reconduzem a métodos que não se distinguem do que dantes abjuravam. Um dia destes, um desses amigos perguntava-me, em jeito de pergunta de retórica: “se pode haver gente de extrema-esquerda, por que não posso defender estas ideias que tu dizes serem de extrema-direita?” Respondi que não vejo diferença entre um radical de direita e um radical de esquerda – o que serviu para que esse amigo, com alguma ira de permeio, me tivesse atirado para as imediações da extrema-esquerda. 
Estas palavras não são um ultimato aos meus amigos que descaíram para o radicalismo de direita. Eles têm direito ao seu pensamento, às opções e às opiniões que lhe sejam consequentes. São da mesma estirpe dos radicais de extrema-esquerda. Os tais que, há uns anos, eram por eles vilipendiados. Todos temos o direito de mudar de pensamento, de opinião e de posição. Ou de permitir que esse pensamento, opinião e posição venham à superfície depois de anos de encobrimento. Ainda estou para perceber qual das hipóteses é o quadro que tenho aberto diante do olhar. 

26.11.19

Estreito


FKA Twigs, “Cellophane” (live at Later...With Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=r7cd9XpCAIc
Eis a varanda de que se falava. Os fiordes cavam fundo o mar constrangido e do estreito avista-se o mar depois, que se abre como se os braços oferecessem muita generosidade. O mar exala um odor intenso, este mar que, por estar constrangido, metido entre os fiordes como se fossem um colete-de-forças, se amansa com o beneplácito da inclinada massa de terra que se eleva a partir do lugar onde é bordejada pelo mar. 
- Temos os pés no navio que nos oferece a descoberta. O estreito é o passaporte. Parece que os fiordes crescem depois do estreito. 
- Faz lembrar, com as devidas diferenças, Vila Velha do Rodão, as Portas do Tejo.
- Com as devidas diferenças...
E assim ficaram, boquiabertos, o olhar inclinado à altura da inclinada massa de terra que irrompe do mar, como se viesse do nada e ao tudo aspirasse. De tanta inclinação do olhar, já doía o avesso do pescoço. O estreito parece ter sido feito à medida do navio. Quase é possível tocar nas paredes da montanha que descem do fiorde em direção ao mar calmo. 
(Também se podia dizer, em formulações alternativas: que o navio é que foi feito à medida do estreito; e que as paredes da montanha se elevam a partir das profundezas do mar, ali consideráveis, se não o navio ficava retido nos baixios.)
O estreito consagra a proximidade com a terra que cinge o modesto braço de mar que teve a ousadia de romper as rochas. O comandante anuncia, num inglês perfeito, que este é o lugar onde os passageiros estão mais próximos da massa de terra que compõe o fiorde. O navio sossega, agora que se avista o fim do estreito. Sentia-se alguma inquietação do navio por estar tão próximo das paredes do fiorde. Sentia-se tensão como parte da banda sonora de que faziam parte o rumorejo dos motores do navio e o silêncio dos passageiros, em contemplação da singularidade da paisagem. O comandante entoa, vagarosamente, o nome do estreito. Não se percebe sequer a primeira letra do nome que dá nome ao estreito. Não é preciso. Retém-se a imagem do estreito, que fica guardado na memória como um estreito que tem um nome impronunciável no idioma local.
- Temos de voltar a passar pelo estreito?
- Não sei. A lógica manda dizer que sim. Não creio que haja outra passagem para o mar aberto de onde viemos.
- Tiramos fotografias depois? Não aprecio esta luminosidade.
- E se não regressarmos por este caminho?
- Tens razão. Vou tirar umas fotografias enquanto é tempo.
Horas depois, já anoitecera, o navio fez-se ao cais numa pequena localidade de pescadores. Desembarcaram. Era o fim do percurso tendo o mar como leito. O resto, seria diferente, por terra. Não voltariam ao estreito.
(A não ser que repetissem a viagem, o que não era seu critério.)

25.11.19

Depilação


Davendra Bahnart, “Baby”, in https://www.youtube.com/watch?v=9gROYU2j-40
Sente o vento pela cauda. O vento sem peias a rondar o pescoço, na atalaia que não causa apoquentação. As sombras nem sempre são vultos e estes não se disfarçam quando pressentem a necessidade de acossar alguém. Se, em vez dos medos, os poros se compuserem na irrepreensível malvasia onde se colhem os verbos cheios, o destempo não será a medida militante e todo o céu amparado nas mãos cauciona a prova dessa colheita. O vento pela cauda está a preceito. Empurra o corpo para o devir. E não é abismo.
Diz: 
podes-me ajudar: podes absorver o sangue desta ferida. Com a boca. 
Os corpos adiantam-se à véspera ansiosamente esperada. A paisagem não foge nos interstícios do tempo, não foge nem que os corpos estejam metidos dentro de um comboio de alta velocidade. Faça-se da meditação o templo que escuda a moderação. A pele está fria, fria como o inverno que tomou o dia de assalto. São invariáveis os sobressaltos das horas contumazes, porque não é possível fazer inventário dos seus fautores. À medida que a pele arrefece e a quietude se contagia à paisagem, a lucidez desembaciada sobe à cumeada dos sentidos.
Mal forem emalados os pertences, antecipando a próxima mudança, sente-se um vórtice no céu da boca, paradoxalmente adoçando a boca. A mão passada pelos poros secos e frios quer dizer que eles só têm saudades das quimeras de que vão ser autores. Ao pretérito, vão buscar apenas os fragmentos emoldurados numa certa historiografia conjunta, lida a quatro olhos num livro publicado nas suas memórias. Diz: 
é preciso saber que a vontade não se sitia, não se intimida com os escombros em que a memória sucumbe. A memória tem os seus mecanismos que depuram o que não interessa reter na mântica gasta, sem servidão, da memória. Fale-se da memória seletiva, que não é fragilidade; é um artefacto cuidadosamente elaborado pelos que se constituem servidores da sua própria ventura. Um artesanato sem preço.
Memória seletiva. É como se houvesse uma depilação da memória e as partes puídas fossem desmatadas, até ficar um terreno agora fértil, pronto a ser ocupado pelos ingredientes que as atribulações do futuro trazem como caução. Ou então, granjeiam-se os campos por onde apetece deixar ir os corpos e depois colhem-se as flores que são a safra deste pecúlio.

22.11.19

Periferia (short stories #176)


Santigold, “Disparate Youth”, in https://www.youtube.com/watch?v=mIMMZQJ1H6E
          Tenho um visto permanente que dá acesso ao miradouro sobre o estuário, onde o estuário se alarga e se confunde com um mar interior. Vejo os olhos que me veem. Não nos cruzamos, porém. Vemo-nos, apenas. São olhares estranhos que indagam sobre os deslimites de si, o eu que não se conforma com alguns aspetos próprios da espécie. É como no estuário, a água doce do rio funde-se com o mar salgado que nele adentra. Às vezes, a tradução dos idiomas estranhos é dispensável. Um rosto consegue falar por mais que mil palavras que sejam proferidas. É quando se sente uma certa periferia a pertencer aos limites do ser. Não é paradoxal. Os cânones são castradores: o que se contém dentro das fronteiras do ser é o que lhe pertence; o que se situa no seu exterior, nem que seja nas proximidades do que é periférico, pertence aos deslimites. É território estranho, insondável; muitas vezes, adverso, não está confinado às extremas que balizam o eu. Como acontece quando o conforto da alma procura o miradouro sobranceiro ao largo estuário, a periferia protesta um salto no vazio, um salto do eu para fora de si, sem arnês. A periferia é colonizada aos poucos, alargando-se os domínios do ser. Sem temer que a periferia colonize o eu: o ato volitivo que se dedica à sede de conhecimento é incomensurável, não é permeável à tomada de posições pela periferia. A dialética entre o eu e a periferia não é hostil. É construtiva. Porque há periferia a rodos, não se corre o risco de invadir domínios alheios quando o eu demanda a sua periferia. Em caso de dúvida, o critério é a consulta ao registo predial. Ficamos a saber que periferias estão por ocupar. No apetite incontroverso pela desmedida do ser, ao cabo do duro combate perseverante contra o ardil do ensimesmamento, até que a periferia que adjaz seja o território novo, edificante e fecundo, que o eu tem para oferecer. A si mesmo.

21.11.19

Ninguém é importante e isso faz-nos muito bem (ou: quando somos tratados por “gajo” ou “tipo”)


Teho Teardo & Blixa Bargeld, “What If...?” (live at Rich Mix, London), in https://www.youtube.com/watch?v=p-_l_R6Dcyk
Que ninguém comece com o pé esquerdo: desenganem-se os que de si têm um autorretrato de gente importante. Não são. 
A matemática é instrutiva. Se formos a contar o número de seres viventes (uns milhares de milhões) e dividirmos o tempo instantâneo por cada alma, não cabem se não uns milionésimos de segundo a cada um. O cálculo só será válido se partirmos do pressuposto que o tempo instantâneo é de distribuição equitativa, mas é sabido que o pressuposto não pode ser validado. Para provar a falácia da igualdade, sabemos que a alguns cabe uma fatia mais generosa do tempo instantâneo: os famosos, seja qual for a razão da fama, saem do anonimato e essa extração é representada por uma quota-parte mais gorda do tempo instantâneo que é de sua pertença. Todavia, se alguém fizesse um cálculo das pessoas a quem cabe tão generosa quota-parte do tempo instantâneo e depois se dividisse esse número pela totalidade das almas viventes, a proporção seria infinitésima.
Nestes termos, faz sentido que cada um se leve muito a sério, tão a sério como se levam os mais ou menos famosos que têm uma quantidade variável de olhos outros deitados sobre o que fazem e o que dizem? Primeiro: não se insinua uma dualidade de critérios, como se apenas os que reclamam uma quota-parte generosa do tempo instantâneo pudessem de si dizer que devem ser levados a sério, por terem credenciais a preceito, e os restantes, reduzidos à irrelevância do anonimato, não pudessem fazer valer idêntico estalão.
(Até porque a centralidade da fama, a sede de fama que assalta muita gente – entre os que já o são e os que aspiram a sê-lo –, é das maiores irrelevâncias que pode acometer uma alma.) 
Aceitando esta dicotomia (famosos e gente anónima), a petição de princípio é seguinte: os que são conhecidos por quase ninguém não deviam ser apoquentados pelo estigma da autoimagem repleta de solenidade, exigindo dos outros um respeito sepulcral a preceito da centralidade do eu. A melhor prova de que não somos levados a sério, nem somos gente importante, é que ao estarmos nas bocas dos outros, os outros a nós se referem como “aquele gajo”, ou “este tipo”. Os nossos nomes não importam. Há, contudo, algo a favor da nossa visibilidade exterior (para os que tanto valor a isso atribuem): há quem fale de nós. Mas não somos tratados pelo nome. Os que connosco se confrontam na aleatoriedade do dia e não nos conhecem, é compreensível que a nós se refiram como “aquele gajo”, ou “este tipo”: não sabem o nosso nome. Os outros, que sabem a correspondência entre o rosto e o nome, deixam-se arrastar para a comodidade de uma fórmula (“aquele gajo”, ou “este tipo”) que não deixa de ressoar a anonimato, provando a irrelevância que somos. 
(Ou, em alternativa interpretação, os nomes deixaram de ser importantes.)
E não é mal que assim seja. Quem gostaria de ver a sua privacidade devassada ao andar na rua por ser rosto de visibilidade pública, notando como os olhares alheios sobre si se deitam? Talvez os que vivem assoberbados pela sede de reconhecimento público aceitem que este seja o preço a pagar pelo desiderato. Para mim, não há nada que pague o conforto do anonimato. Que seja considerado pelos outros, os que me conhecem e os que não me conhecem, como “aquele gajo”, ou “este tipo”, é um serviço inestimável que me prestam. O meu nome é património privado.

20.11.19

Sobre o mecenato que aproveita às pessoas


Acid Arab, “Gul l’Abi”, in https://www.youtube.com/watch?v=0e0txlm7KUo
Mote: “Um benfeitor anónimo anda pelos bairros pobres da periferia de Istanbul (Turquia) a pagar as contas em atraso nas mercearias e a deixar envelopes com dinheiro nas portas.” In Público, 19.11.19, p. 25.
            (Uma reconstituição, ficcionada)
A mulher herdou uma fortuna de seu pai, um magnata da extração de minérios. A mulher sempre teve sensibilidade social e interessava-se pelos desfavorecidos. A miséria, tinha-a como uma injustiça que era prova da ausência de deus. O pai, capitalista incorrigível, era o epítome do egoísmo e da avareza. 
(Como fica bem contar numa narrativa com timbres morais; como cabe sempre bem na narrativa, apoucando o capitalista, necessariamente adicionando o adjetivo a preceito: “porco”.)
A filha não falava com o pai há muitos anos. Foi ela que o rejeitou, encruada com o descoração do pai. O pai sempre manteve as obrigações de paternidade. Nunca faltou nada à filha, por mais que ela o desdenhasse e à sua abastança. Estudou e fez algum conforto material a expensas do pai. Para o provocar, alistou-se em movimentos rebeldes que protestavam contra o regime político. Ela sabia que o pai bebia na mão dos mandantes. Ele próprio era um reconhecido membro da oligarquia dos negócios que amesendava com o poder político.
No dia do funeral do pai, a filha estava em viagem de voluntariado num país africano. Não verteu uma lágrima. Não antecipou o regresso a Istanbul. Faltou ao funeral. Entre a família e o séquito, ninguém perdoou o agravo, a ausência na homenagem final de tão admirável homem, a flagrante desconsideração do pai. Esse não era o retrato que tinha do seu pai. Teve de enfrentar impugnações ao produto hereditário que, por lei, lhe era destinado. Ao início, considerou a hipótese de recusar a herança. Teria de ser coerente com os seus princípios. Aceitar a herança podia ser entendido como um ato de oportunismo e como indireta e discreta homenagem ao pai. Não havia nada naquele homem – frio, avarento, egoísta, insensível – que pudesse homenagear. Para piorar o seu estado de alma, receber a fortuna do pai entrava em contradição com a indiferença pelos valores materiais por que se pautava.
Decidiu aceitar a herança. Não quis saber das minudências do império empresarial. Nomeou a primeira pessoa que se atravessou no caminho, e que era parte constante da obediente coorte do pai, para gerir esse império. A fortuna com expressão em bens tangíveis passou para a sua titularidade. Tinha um plano. A fortuna serviria para a redistribuição que o pai sempre recusara. Queria-o fazer anonimamente. Não queria ficar nos anais como uma heroína que atuou em favor dos pobres. Não queria esse reconhecimento público, nem comendas, nem o agradecimento das pessoas ajudadas e das outras sensibilizadas com o gesto. Só queria ajudar pessoas. Melhorar as suas vidas. 
Passou a dormir de dia e a laborar durante a noite. Sozinha. Não quis confiar em ninguém, não fosse alguém descair-se e revelar a sua identidade como a benemérita que começou a semear sorrisos nos bairros pobres da periferia de Istanbul. Andava pelos bairros, ao entardecer, para inventariar as pessoas importunadas por dificuldades. Mais tarde, quando a noite tinha a companhia do silêncio, fazia uma ronda pelas moradas das pessoas que tinha inventariado horas antes. Deixava nas caixas de correio envelopes com fartas maquias. No dia seguinte, antes do encerramento do expediente, visitava bancos, empresas de água, gás e eletricidade, mercearias, escolas, livrarias e farmácias, e pagava, em nome dos devedores, as suas dívidas.
Agora já podia morrer em paz, aliviada por ter pago em nome do pai as dívidas por que ele nunca quis ser responsável. Essa era a maior homenagem que lhe podia prestar. Sem ele saber. Talvez, sem ele dar conta de ser merecedor. 

19.11.19

Sobre a praia (short stories #175)


Dead Can Dance, “Summoning of the Muse”, in https://www.youtube.com/watch?v=5J8mvTWceO8
          Não sei dos segredos. Não sei dos sortilégios invocados pelos roteiros da pureza. Conto com os dedos simples para afastar as folhas húmidas que possam travar o passo. Não está longe, a praia. Pressinto o mar no seu murmúrio, as estrofes que convidam as mãos a verter as lágrimas na espuma cindida do resto da maré, a espuma despojada na areia. Não hão de ser as lágrimas a bordejar o mar. Espero que se diluam na maré maior. Espero que, ao chegar, o mar traga a mim o sangue de que preciso. É noite. Sei que estou sobre a praia. A configuração das sombras deixa antever as formas sublimes da praia, a fusão entre a terra e o mar; a fusão entre o corpo e a alma, ofício que nem sempre se configura acessível. Estou sobre a praia, à espera de algo que se assemelhe a uma reconstrução. Pois a praia, como residência do mar, presta-se ao apartar das angústias: elas dissolvem-se no salitre que esvoaça, com o vento intransigente como companhia. Na praia apetece demorar. Não está ninguém, a não ser a noite. Apetece demorar. As modestas luzes da iluminação pública emprestam uma luminosidade sóbria que se deita sobre a praia. As ondas rompem o silêncio da noite medular. São a voz do mar que se quer ouvir. Talvez me contem os segredos, que não sei quais são. Não estou seguro de que saibam dos meus, ou que os meus tenham categoria para uma entidade faustosa como o mar. Pudesse a praia ser notário dos segredos meus, para que eu deles pudesse ter vencimento – para que eu deles pudesse ter inventário, ao menos. Estou sobre a praia, os ossos enregelados pelo vento intransigente que uiva como se houvesse um grito lancinante a entoar no silêncio da noite. Como se a noite, ou o mar, pretendessem um acerto de contas. Sobre a praia, queria verter os segredos, mas não me lembrava deles.

18.11.19

Portfolio (short stories #174)


DIIV, “Horsehead” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=vKw-o87s8L4
          Que fazemos com a culpa? Estreita-se o pensamento num quadro caiado, enquanto se aceitam os rumores da antecipação. Que fazemos com a culpa? É a interrogação que não tem sede no umbral da memória. A interrogação que mais conta é outra: o que é a culpa? Vem determinada do exterior e impõe-se sobre as arcadas dos nossos comportamentos? Ou é apenas um juízo da consciência, e a consciência reproduz-se num processo de autodefesa que termina como uma ilusão de si mesma? No cortejo de interrogações, talvez haja tempo para aligeirar os ventos iracundos que sobram de tempestades, todas elas pretéritas. E perceber que se foram pretéritas, as tempestades deixaram de contar para os cálculos que importa fazer. É como se fosse preciso encontrar um fuso horário, novo. Reorganizar conceitos, na indistinta fusão que desagua na maresia herdada. A moldura refaz-se nos interstícios da paciência. Devolvem-se ao poço fundo, imemorial, os fragmentos que evocam sobressaltos. Não se evitam os sobressaltos, possíveis a toda a hora; rejeitam-se os de antanho, para encobrir a culpa que se disfarça numa nuvem pesada de angústia. Os ossos sentados na medula dos sentidos descobrem um novo sentido. A moldura traz à superfície um novo portfolio. Desenganem-se os profetas enegrecidos: não é um disfarce da culpa, o novo portfolio. É um olhar diferente, reinventado, que levanta âncora de um cais encontrado num novo mapa. Os conceitos gastos perdem validade. Não é um ardil. O repensar acautela a nova forma que é o novo desenho da alma. Não é uma fuga; é a nova moldura que encerra os limites do ser. As culpas todas, arquivadas na mnemónica do porvir, foram atiradas para a nova gramática de onde se reordenam as coisas em sua maciez futura. Abotoa-se o portfolio em agasalhos sem memória. A dedução dos oráculos é um erro sem remissão. Ao menos isso. A culpa é a confissão da humildade.

15.11.19

Eu coço as tuas costas e fico à espera que tu coces as minhas


Russian Baths, “Parasite”, in https://www.youtube.com/watch?v=DMdhGyPWSWE
Vamos falar de monopólios e de concertações de esforços entre pares e de corporativismos. Vamos falar de coçar as costas uns dos outros, uns aos outros, quando uns precisam das unhas macias dos outros e estes ficam à espera de retribuição equitativa. Vamos falar dos que amesendam num lugar de acesso reservado ao escol e fazem pose quando outros, os “candidatos ao estatuto”, reclamam um pequeno lugar que não distrai as atenções do escol entretanto elevado ao papel de escrutinador – como se fosse possível ser jogador e árbitro ao mesmo tempo. E vamos falar do consenso surdamente estabelecido, para nem migalhas deixarem para os que se candidatam ao estatuto, ou o querem manter em sua modesta estatura no cosmos a que estão condenados a serem atores residuais. 
Os pajens do reino, devidamente industriados, exigem aos forasteiros o que transigem quando coçam as costas de um semelhante. É o preço de um monopólio, em rigor, do privilégio que dividem entre si, obnubilando a concorrência entre eles, condenando os utentes a padrões inferiores (mas sempre julgados como superiores). Em vez disso, escudam-se reciprocamente nas alcavalas de um estatuto que confere direitos adquiridos, consentâneos com um dom iluminado herdado de sucessivas levas e que, por ser adquirido e firmado em registo de intemporalidade, não se questiona. O que se questiona é o topete de uns arrivistas, neófitas personagens à margem (daí serem marginais – e, talvez por ato reflexo, destinados à marginalização).
Os personagens devidamente iluminados, por direito herdado por estatuto tatuado na incomensurável autoridade entre pares, passeiam alguma pesporrência intelectual, devidamente disfarçada para a pose de julgadores entre pares não ser ostensiva. Só sabem dançar se a música entoar padrões duplos. Pois entre si baixam a guarda e selam, com assinatura antecipatória, o zelo da qualidade quando estão de atalaia aos seus semelhantes. Não acautelam um axioma da grelha de análise que usam na profissão: desconhecem a imparcialidade, a não ser na retórica oca que se esgota na mudez das palavras imediatamente a seguir a serem proferidas; quando sobra a mudez dessas palavras que auto-inocentam quem as profere, fermentam os vieses. Entre pares são pródigos na generosidade, não poupando nas genuflexões que artilham a grandiloquência dos que se sujeitam ao escrutínio. Fosse esse o estalão quando escrutinam quem não pertence ao escol.
E coçam-se as costas, reciprocamente, demoradamente – perenemente. Alérgicos à concorrência, descendo a exigência quando um coça as costas do outro, à espera que, depois, um seu par venha cobrar a deferência. Distraídos, nem percebem como dão o flanco: de tanto afã em registarem a marca dos privilégios (que já são incontestáveis), só descansam quando asfixiarem quem menosprezam. Sem darem conta, dedicam à concorrência obliterada o maior dos elogios por palavras travessas.  
(Qualquer semelhança com a avaliação de universidades é mera coincidência)

14.11.19

Moratória (short stories #173)


Thom Yorke, “Anima”, in https://www.youtube.com/watch?v=TdmWJZEbJBU
          “De que serve uma moratória, se não temos a certeza do tempo?” Não era por o horizonte trazer o céu agora sem nuvens que o sinal de lucidez tinha lugar. A interrogação podia ser revirada: “se não sabemos do amanhã, como sabemos o que está contido na moratória?” Possivelmente um nada, se o tempo com tempo para o lugar da moratória for tempo ausente. Mas, às vezes, temos de alinhavar uma moratória. “Não estamos preparados para acertar no tempo presente umas palavras raras, uma empreitada nunca experimentada, um ato que possa ser imorredoiro”. Se ainda não é tempo, não é o tempo que se adia: são as palavras raras, a empreitada nunca experimentada, o ato que possa ser imorredoiro. Esperamos pelo tempo. O tempo que seja certo, na sempre subjetiva medida que o compensa. Do tempo sabemos ter sempre a sua medida, o seu lugar. O que é amovível são as palavras raras, a empreitada nunca experimentada, o ato que possa ser imorredoiro. A moratória estabelece a diferença entre o tempo e o alcançar do que se submete ao adiamento. “Às vezes, a moratória é o ato corajoso.” Contrariando o lugar-comum de que os timoratos têm medo do presente e deixam que o tempo vindouro, na sua ampla indeterminação, seja fautor do que parece terem medo de alcançar agora. “Repito: às vezes, a moratória é o ato corajoso. Encerra a coragem de intuir que o tempo que corre não é a medida certa para o que acaba por ter adiamento.” Os eternamente insatisfeitos podem protestar que este é o compêndio certo para a inação. De moratória em moratória, extinguem-se no fio delgada da desmemória as palavras raras, a empreitada nunca experimentada, o ato que possa ser imorredoiro. Não sabemos dada do futuro. Não podemos antedizer que esse é o resultado esperado de uma moratória. Não podemos atestar que uma moratória está na origem de uma próxima moratória, e assim sucessivamente, até nada restar do purgatório do tempo pretérito. A moratória é quando tem de ser. Se for corajosamente entretecida. 

13.11.19

Arrumação

Massive Attack, “Black Milk”, in https://www.youtube.com/watch?v=NdpfrKLH-iA
A desordem como única ordem visível, as coisas sem lugar, os lugares com coisas amontoadas, gavetas desarrumadas, uma mistura de coisas irreconciliáveis ganhando lugar num lugar que não devia ser seu, peças de roupa descombinadas, calendários perdidos, a chave mestra do caos, o pó denso que se acama nos móveis, os mantimentos que ora falham ora sobreabundam na dispensa e no frigorífico, a louça por lavar, empilhada, roupas que deviam visitar a lavandaria, o pensamento desalinhado, sem rédeas, horas sem hora – instalação porventura improdutiva de uma existência desassisada.
A arrumação soergue-se como necessidade. Pausa. Para interiorizar. 
Arrumação. Sentido e ordem – e serão necessários? Perguntava se queria ser refém de regras herméticas, regras que, apesar de estabelecidas por si, eram regras e, como regras, de observação imperativa. Lembrava-se de tempos de antanho, quando a irreverência era modo de vida, uma militância, e provocava as regras com desdém. Continuaria a ser ele próprio se, agora, umas décadas vividas, dele fruíssem as regras que apresenta como hipóteses para congeminar a arrumação que determinou necessária? Talvez, se fosse para dar ordem a um sitiar ao mesmo tempo heurístico, se desconfiasse que pôr a vida em ordem seria heurístico.
Não estava convencido. Não sabia se precisava de uma arrumação que levasse tudo a eito. Uma reminiscência vaga assombrava os sonhos. Só conseguia distinguir uns vultos. Ele era um dos vultos. E desse vulto sobrava uma aura de meticulosidade irrepreensível, hermeticamente selada contra qualquer fuga. Os sonhos evocavam uma sua personificação anterior – de que, era claro, se tinha esquecido – embebida nas possíveis virtudes da ordem, metodicamente organizada, quase doentiamente organizada. Não se lembrava de mais nada. Tinha receio que os sonhos desalfandegassem essas recordações, que asfixiavam a personificação anterior do, todavia, mesmo eu.
Não precisava de mais nada. Se o eu de agora não tinha lembranças da anterior personificação, é porque não havia nada que merecesse ser recordado. A arrumação que o caos constante parecia augurar era um logro. A probabilidade de ser um qualquer esquivo fantasma a reavivar essa não recordável personificação do, todavia, mesmo eu, escondia o propósito da arrumação que adejava como imperativo nos dias em que a desarrumação o sobressaltava. 
A arrumação impetrada era transfiguração de uma desarrumação ainda pior. Tinha de imprecar os ventos que sopravam a favor da arrumação, tirando-lhe a máscara para ficar à mostra o que era: desarrumação que tinha a sua desarrumação como alvo.

12.11.19

Material metalúrgico


P. J. Harvey, “Red Right Hand”, in https://www.youtube.com/watch?v=ScC-teZyK-Y
Um mar de limalhas retarda o passo. As pernas afundam-se na densidade. O odor metálico instala uma náusea geral. A condizer, um céu plúmbeo, profundamente plúmbeo. Não há pássaros. Não há gente. No espaço limítrofe que é dado a perceber pelo perímetro do olhar, não há gente. É como se aquele lugar fosse um ground zero e tu não reparaste no perímetro de segurança que proíbe a estadia no local.
És tomado pela aflição: provavelmente, o lugar está contaminado. Chumbo, amianto, as limalhas por todo o lado, amontoadas as escoras da siderurgia – percebes que, outrora, o lugar foi uma siderurgia. Agora é um cenário apocalíptico, ao abandono, sem vivalma por perto (e nem os animais habituados aos ambientes hostis espreitavam a sua presença). Não sabes como foste ali desaguar. Não te lembras. Nem sabes o caminho que te trouxe da cidade (mas, de que cidade?) até à siderurgia em ruínas.
Contemplas a beleza paradoxal das ruínas. O que dantes foi lugar de efervescência, onde centenas de operários contribuam para a prosperidade (mais dos proprietários da fábrica do que a sua – é a tua confabulação, uma reminiscência mal digerida da luta de classes), está agora no cadafalso da decadência. A evocação dos tempos de fausto é demiúrgica. E arbitrária: não sabes da história da fábrica; não sabes por quantos anos irradiou prosperidade; não sabes se os trabalhadores se expunham a doenças sem remédio, ou se acabavam o dia com o conforto oportunista de um ganha-pão. Não sabes por que a fábrica caiu em decadência. Se foi uma crise que tomou conta de toda a economia, ou se as circunstâncias se jogaram contra esta fábrica, apenas. As crises têm este atributo: são material metalúrgico, incomestível, indigerível, que é dado a provar à economia, envenenando-a. E ela, a economia, sem saber o que está a provar.
Não sabes como sair da antiga siderurgia. Enredas-te no labirinto de corredores que se sobrepõem a corredores e a salas amplas, que dão saída para outros corredores e salas amplas. Gostavas de ser cirúrgico para levantar a ponta do véu que cobre a fábrica com um mistério insondável. Nem que fosse preciso um sismógrafo para sentir as dores percutidas pelos restos metalúrgicos despojados, à espera não se sabe do quê. Se ao menos alguém pudesse dar-lhes outro uso, sairias da fábrica mais sossegado (concluis, hipocritamente, só para ficares bem no retrato do imperativo hodierno do ambientalismo). 
Não levas essa garantia contigo quando encontras a porta da saída e um caminho reto que te encaminha para o portão onde finda a propriedade. Não sabes o que foste ali fazer. Também não interessa. Há dias assim. Passa o dia inteiro e quase não tens recordação de ele ter passado. Talvez seja da exposição ao material metalúrgico.

11.11.19

Fast track (short stories #172)


Nine Inch Nails, “Closer” (ft. The Muppets), in https://www.youtube.com/watch?v=Z7c28KhPEpo
          Com que então, tiraste da algibeira a senha da celeridade? Com que propósito? Deixa que te diga: da pressa não levas o vencimento de coisa alguma. Da pressa, retiras apenas o engodo de que és vítima, quando ao início te convenceras que estavas à frente dos demais e sabias-te penhor de um albergue onde tiravas partido de uma vantagem sobre os outros. Faço outra pergunta: e o que importa chegar antes dos demais, ou saber que estás à frente de todos eles, se o pano neófito não te assenta como se fosse peça tirada a régua e esquadro num alfaiate? Pode-se intuir que essa vaidade é estulta, uma cisma que te alteia a um púlpito sem serventia (ser primeiro em algo; chegar antes dos outros; inaugurar uma empreitada, sem saber que o teu nome fica imortalizado na placa a preceito). O que ganhas, a não ser uma vã impressão de uma grandeza que insistes em trazer ao teu regaço? Sabes: essas grandezas são prováveis medidas de uma vacuidade sintomática. Como avenidas à medida dos escolhidos, lugares reservados aos “notáveis”, privilégios tontos que confirmam que a igualdade é uma miragem. Se ao menos soubesses que o tempo é efémero. E que a sua efemeridade reduz a nada os apressamentos que desgastam o fio frágil da vida. Se ao menos soubesses que somos reféns do tempo, e não seus tutores. A sofreguidão do tempo é das maiores misérias que pode locupletar a condição humana. É como atestar o depósito da alma com uma substância que a esvazia. Só quero dirigir-te mais uma pergunta: o que sobra quando sentes que alcanças uma proeza desta estirpe? Desdobro a interrogação: o que te percorre interiormente, depois do privilégio do tempo que julgas derrotado, não é um imenso vazio que depois tens de preencher com outra, e mais outra, proeza estéril? O corredor destinado aos privilegiados é a prova da sua exaustão. Não derrotam o tempo quando julgam ultrapassá-lo. Ficam por ele esvaziados. E nem dão conta.

8.11.19

Pedra alta (short stories #171)


Brian Ferry, “Song to the Siren” (live in Belfast), in https://www.youtube.com/watch?v=9PfHkQvUb3k
          Não é passo menor. Uma subida íngreme, o ar quase extinto, os pulmões abraseados. Manda a perseverança que não abrandes o passo. Ao cimo, a paisagem é a paga merecida. O corpo luta contra si mesmo. O suor lava-o. A incandescência mental mantém acesa a fogueira que alimenta as forças – e pensas: oxalá fosse sempre assim, como se as forças fossem inesgotáveis mercê do emulsionante da mente. Às vezes, o plano parece vertical. Não capitulas. Ouviste dizer que na cumeada existe uma pedra – que só se podia chamar “pedra alta” – que é a dita paga merecida para os que não se atemorizam com o plano alcantilado da subida. É provável que a empreitada seja estorvada por uma tempestade, a crer nas nuvens que se amontoam em pressentimento ameaçador. Que não seja o agente da desistência; a tempestade pôr-te-á à prova, na triagem que distingue os que não recusam as provações dos que são figurantes. Também é provável que a tempestade exauste as forças. E que no auge da tempestade, quando a mistura explosiva de chuva, vento e trovoada, em forças unidas que soa a conspiração, temas que atingir a pedra alta se afigure como uma impossibilidade. Essa é a maior prova de vida. Por mais que a pedra alta tenha ficado ocultada do campo de visão, e que este só consiga distinguir uma terrível confluência feita de vento arrevesado, chuva torrencial e clarões dos feéricos relâmpagos, sabes que a pedra alta não sai do lugar. Insistes, contra a improbabilidade dos elementos que se jogam contra ti. Insistes, nem que seja no passo vagaroso, errático, sem perder a esteira da rota que importa. Animado pelo atingimento da pedra alta, até que sintas que a tempestade deixou de assolar o lugar em que te encontras. Nessa altura, sabes que só falta um pequeno esforço. E depois, na pedra alta, sentirás um amplexo de fortes sensações a tomar conta de ti. Permitir-te-ás a glória sublime de quem derrotou as contingências. E celebrarás na pedra alta, a preceito, como se tivesses atingido o teu particular Evereste.

7.11.19

Margem de erro


DIIV, “Skin Game”, in https://www.youtube.com/watch?v=YU-tg374yoA
O castelo acabado: uma fértil safra contra os embaraços que não têm vez marcada no calendário. Se houver alguém que porfiar na perfeição, que seja denunciado e levado a julgamento: essa ambição (dir-se-ia, em idioma antropológico: essa heresia) arranca da carne das pessoas o seu ser genuíno, torna-as uma adulteração impossível.
Prefira-se, antes, a margem de erro. Em vez do abismo marcado a ferros incandescentes, o lúgubre estado da perfeição inacessível, prefira-se a margem de erro. Ninguém sabe do estado inteiro das coisas todas que importa compulsar; ninguém tem as coordenadas completas do palco, do imenso palco, onde têm articulação os episódios de que é feita uma vida. Com a margem de erro, deixamos de nós a veste humana, a humilde consideração da imperfeição. Essa será a maior honra que podemos prestar às proezas que a humanidade foi capaz de selar desde tempos imemoriais. É o ato de glorificação da grandeza de cada um.
*
  Réplica: e, todavia, conferir o poder heurístico da margem de erro é o reverso da perfeição. É a possibilidade deixada em aberto pela inalcançável perfeição. Não deixa de ser uma outra modalidade de perfeição; dir-se-ia: o rosto humano da perfeição, descontada a perfeição impossível que se sublima na perfeição que sobra ao subtrair a margem de erro aos atos cometidos. As pessoas não deviam precisar de margem de erro para disfarçarem o arrependimento pela impossível perfeição. Deviam assumir-se como são, pessoas em sentido inteiro. Em sentido inteiro: pessoas banhadas por águas impuras, tomando decisões que divergem do pretendido, que falam o que não tencionam falar, que se enredam em mentiras, umas voluntárias e outras apenas o registo de omissões, mas nem assim pessoas diminuídas. 
O cuidado da humanidade será menos exigente se forem banidos os laivos de perfeição, direta ou com a intermediação da margem de erro, a açambarcar a vontade. Tudo devia ser apenas volitivo. Sem a espada severa da contabilidade que se regista no final ou a meio do andamento. Sem a pulsão indigente da falsa ilusão dos planos desenhados ao milímetro. Deviam subtrair as ferramentas desta pérfida engenharia que adultera as almas – a regra e o esquadro, o transferidor, o fio de prumo, toda uma cofragem soez. 
Deviam deixar as pessoas ser como elas são. Perfeitamente imperfeitas, se é que a metáfora paradoxal e esquizofrénica não constitui ultraje para alguém. 
(Em constituindo, sugere-se o ensimesmar que medre o convencimento de que nada, ou pouco mais do que isso, merece as algemas da intensa seriedade.)

6.11.19

Beija-flor


Medicine, “Time Baby III”, in https://www.youtube.com/watch?v=DorLHLxvrFM
“Não caio”, alegava contra as minhas intenções, depois de uma tarde forasteira que parecia não levar a nenhum desaguar. “Não caio e, todavia, sinto que o vento traduz a minha fragilidade.” Tu ouvias. Estranhavas algumas dessas palavras. Soavam-te a um estéril manancial errante, palavras sincopadas por outras que se atravessavam a meio do caminho. 
“Não caio e, todavia, sinto que o vento traduz a minha fragilidade. É como se amanhã fosse um precipício”, dizia, com a mesma gravidade de quem não sente o que fala. Era como se o rosto se estremunhasse pelo entardecer, um sono por estabelecer a horas impróprias. A menos que dissessem: “não há horas impróprias. Para nada.” Não ouvi tais palavras, por mais que procurasse nas imediações – não havia vivalma. Podia, ao menos, ser uma voz sem rosto a murmurá-lo ao ouvido, sob a custódia de um ângulo morto em que o olhar não tivesse serventia. Mas era só um silêncio que se impunha, contra os tarefeiros das aleivosias que estão sempre de atalaia. Não me importava. Não me importunavam, esses tarefeiros. 
Havia uma ardósia no café que convidada à deposição dos pensamentos de quem por ali estivesse. Preferi guardá-los para o bloco de notas. Não queria amesendar na lógica comunitária que se contagia, agora que os meios convidam a sermos exportadores de voyeurismo – que é como quem diz, a projetarmos o voyeurismo de nós mesmos para o exterior, partindo do pressuposto que há voyeurs prolixos que não recusam um olhar de nesga ao que não pertence à sua vida. 
“Não caio e, todavia, sinto que o vento traduz a minha fragilidade. É como se ontem fosse um precipício. E agora pressinto que o luar congemina a minha sagração.” Não sabia de onde proviera este oráculo. As rodas de uma fábrica sem sítio não deixavam de percutir no mais fundo tutano. Podia ser o pressentimento. Ou o coalhar de um hábito sem marca de água. Pudesse confirmá-lo, ao menos. E dizer ao mundo inteiro, com direito a anúncio pago em jornal, que preferia ser beija-flor porque eras, em cuidado do meu amor, a flor que não me cansava de beijar. Até que as palavras avulsas, errantes, fizessem todas sentido, porque embebidas na água perfumada, quimérica, do amor que o beija-flor tem como beijo.

5.11.19

A invenção dos invencíveis


Little Dragon, “High”, in https://www.youtube.com/watch?v=-AsLISPht_M
Os armeiros não eram queridos por ninguém. E, todavia, eram cada vez mais solicitados, sempre em segredo. Não eram tempos de armistício. A carestia das armas era o sinal dos tempos. No espelho da demência que fazia o seu caminho, tomando conta de mais gente, as armas eram o argumento derradeiro. Ninguém o admitia. Mas quase todos guardavam em casa, em segredo, um pequeno arsenal. Era o precipício da distopia que já estava nas imediações das almas.
Os dias não deixavam de ser plúmbeos. Por mais que o instituto de meteorologia prometesse um dia soalheiro, as nuvens, as teimosas nuvens, não desabitavam o céu. Dizia-se que o crepúsculo constante prolongava a melancolia. Ninguém sorria. Ninguém confiava no semelhante. Ninguém usava da simpatia e a boçalidade contaminava-se num crescendo que não parecia ter limite: à boçalidade respondia-se com boçalidade em dose maior – e assim sucessivamente. Os poucos estrategas da confiança no futuro tinham batido em retirada, sentindo-se inseguros. 
(Havia notícia de purgas coletivas por bandos de encapuzados que batiam as casas à procura dos hereges deste tempo, os estrategas da confiança no futuro, os que desafiavam o palco plúmbeo que tomou conta do leme dos tempos. Depois de presos, ninguém dava notícias sobre o seu paradeiro.)
Os que vinham de fora eram avisados na fronteira: “aqui não se aceitam boas disposições, palavras de cortesia, gestos de boa educação. Aqui não se aceitam expressões misericordiosas, que são dispensáveis os julgamentos dos forasteiros. Fica desde já notificado, através do carimbo de entrada no passaporte, que será judicialmente perseguido se, por algum meio, procurar derrotar o estado de sombras que foi legalmente decretado.” Os forasteiros, assustados, só queriam despachar com desembaraço a empreitada que os levara a esta terra para dela desertarem. 
Ninguém era capaz de explicar os ventos pútridos que tomaram conta desta terra. Aos olhos dos semelhantes, o paraíso não estava longe. A propaganda assim o encomendava. Nunca houvera mandantes tão prodigiosamente salvíficos. Mas as nuvens não aliviavam o peso que se arqueava sobre os cidadãos. Havia uma dissonância entre a retórica e o que era sentido pelas almas. Ninguém o podia denunciar. Era nesta esquizofrenia que se vivia: emparedados entre o ar irrespirável e terrivelmente pesado e a retórica do éden que estava mesmo a chegar. E a adulteração dos sentidos, quando se insinuava que o ar pesadamente plúmbeo era o selo dos novos tempos em lépida abundância e conforto. 
Muita gente esperava, em metódico silêncio, que os inventores tivessem coragem de dar um passo em frente, rompendo com a inércia. Em todos os lugares, sempre que os lugares foram desfiados por uma encruzilhada, houve uns predestinados que souberam dar resposta à altura. Era isso, ou a decadência sem retrocesso. Contra as profecias autorrealizáveis dos mandantes. Contra a adulteração dos sentidos, de que as próprias vítimas eram primeiras culpadas. 
A corrida às armas, era apenas um pretexto para reparar a incerteza do porvir. E o acidulado sabor dos tempos corrompidos.

4.11.19

Não escondas a idade


The Breeders, “Walking With a Killer”, in https://www.youtube.com/watch?v=0xBwXJkxlPI
As palavras vertidas em papel não se rasuram,
advertias, de atalaia contra possíveis entorses do apregoado. Importunavam-te obnóxias personagens que disfarçam as rugas debaixo de um tratamento dispendioso, ou de também dispendiosos (mas menos) produtos que costuram um retoque aqui e outro ali. Insurgias-te contra os que se escondem do envelhecimento e querem esconder o envelhecimento do olhar usurário. Protestavas: 
- Não é gente credora da autenticidade. A vergonha do seu envelhecimento é uma vergonha de si mesmo. Só faltava alguém propor, por entre os arremedos de loucura que são as bainhas do mundo, a higienização dos mais velhos, por – como dizem os juristas – inutilidade superveniente. Só faltava as pessoas perderem prazo de validade, como se alguma vez tivesse sido determinado que as pessoas têm um prazo de validade ditado antes do tempo. Mas a estultícia maior é dos que se escondem da idade. São eles próprios que afixam um prazo de validade. Nunca pensei que houvesse quem desautorize a sua autoestima.
            Lá fora, na rua fria do inverno que já deita um olho ao calendário, um casal de septuagenários passeia, vagarosamente, na companhia de um cão. 
- As pessoas têm direito – um direito natural – ao ócio, depois de uma vida quase inteira de trabalho,
dizias, ao mesmo tempo que o meu olhar parecia confessar que tinha medo do estado etário do casal. E não fazia sentido, o temor: o casal estava bem conservado e dele emanava uma cumplicidade que o hedonismo e o desejo prévio não permitem entender.
- Tens medo da velhice? 
perguntaste, notando o meu incómodo com o casal septuagenário que passeava um cão também idoso. Só deixei o silêncio falar. E o silêncio dizia, através do meu rosto: tenho medo da senescência. Mas não o quero confessar. Amedronta-me a perda de capacidades, das físicas e das mentais. Interrompi o silêncio: 
- A velhice faz-me lembrar a decadência. Bem-entendido: não a decadência no seu significado depreciativo, como um lúgubre ancoradouro onde as almas se entregam a um purgatório irremediável. Decadência, como acontecimento natural, que segue a perda de capacidades com o advento da terceira idade. Tenho medo da velhice como tenho medo da morte. Na velhice, vejo o presságio da morte. Ignoro se ainda tenho muitas equações por resolver na vida que trago. Sinto que essas equações são um embaraço ao descomprometimento da velhice. Não sei se os primórdios dos decessos dos da minha idade ajudarão a mudar esta impressão, para que eu saiba que não há drama na finitude da vida. Mas não tenciono esconder-me do envelhecimento. Não irei para gabinetes de estética ou para camas de cirurgia plástica para disfarçar os sinais do envelhecimento. Não serei protótipo de um homem a destempo, como se ainda fosse fácil algumas proezas que dantes eram quase banais. Às vezes, quando olho para os velhos sinto-me dividido. A imagem de ternura vem no dorso de alguma comiseração – eu sei, não o devia sentir – que é, talvez, autocomiseração antecipada. É isso que me magoa na velhice dos outros: o pressentimento da minha própria decadência.  
            O casal de velhos do outro lado do passeio deteve-se à frente do canal, contemplando a luz desmaiada do entardecer. Ele passou a mão suavemente pelos seus ombros, agasalhando-a com ternura. Ela respondeu com um beijo arrancado à sua boca, o prefácio de uma demorada fusão dos olhares recíprocos. Lá dentro, no café, onde ambos eram testemunhas do enlevo dos velhos, um consolo apalavrado:
- Vês? Não deves temer o envelhecimento.

1.11.19

Personal best (short stories #170)


Radiohead, “House of Cards”, in https://www.youtube.com/watch?v=8nTFjVm9sTQ
          Usava uma nomenclatura cifrada. Era a maneira que tinha de guardar os segredos só para si. Porque sim. Não confiava nas pessoas. Vivia sobressaltado pela hipótese do logro – e o logro só podia partir dos outros, que ele não tinha a demencial pulsão de se malfazer. Pelo menos, disso estava convencido. Com o tempo, passou a estar menos convencido. Andava com umas leituras que desataram a introspeção e vieram dar caução a dúvidas no limite das interrogações que formulava. A certa altura, ficou sem saber se os outros queriam conspirar contra ele. Talvez fosse um exagero. Por que queriam os outros conspirar contra ele? Ou melhor: por que saberiam os outros da sua anódina existência? Começava a sentir um alívio das perplexidades que foram a razão de tanta desconfiança, que foram a fogueira onde crepitava uma certa tendência para a sociopatia. Estas dúvidas existenciais não fertilizavam a antítese do isolamento que julgava protetor. Não se sentia consumido pela solidão inata. Não sentia falta de ser reconhecido pelos outros – até porque o reconhecimento ia ao encontro da apoplexia dos outros, que por dele tomarem conhecimento podiam querer industriar um logro que seria em proveito deles e contra a sua sanidade. Estava cometido ao seu personal best: começou a falar com mais pessoas e, no seu metódico critério, a anotar a estatística. O caderno dos registos mostrava como, em vários dias consecutivos, atingiu o seu personal best. Agora era extrovertido e extravagante. Frequentava a sociedade. Procurava os holofotes. Mudou. E de tanto mudar, passou-lhe ao lado a interrogação mais importante: uma mudança tão radical não encerra a transfiguração de si, não o adultera ao ponto de não haver semelhança entre o eu atual e o eu de que se desprendeu? Não deu resposta à demanda, porque a mesma não foi anotada no seu (outrora) metódico caderno de encargos. Agora, o eu era diferente do eu anterior. E isso é que importava. Um personal best