Hot Chip, “One Life Stand”, in https://www.youtube.com/watch?v=db9dBKcpIOw
O sino da igreja aguarda pela sua vez. Espera para inaugurar o silêncio com o seu troar sincopado. Não consta que haja gente a aguardar pelo ribombar do sino. As pessoas estão habituadas à marcha do tempo. Sabem que o sino da igreja é a melhor testemunha (como se já não bastassem as penitências quando saem da igreja). Em segredo – porque ninguém o admite – muitos são os que estão de atalaia. Esperam pelo vociferar do sino e é não por não trazerem relógios consigo; é um ritual, as pessoas (sitiadas pelas superstições) são devedoras dos rituais. Ainda por cima, a próxima é a noite em que uma importante dobra do calendário está em liça. Muda o ano. Muda o ano quando o sino da igreja entoar a décima segunda metálica martelejada, que ressoará na cabeça de muitos aldeões como uma intrusiva agressão, desnecessária se não fosse tratar-se da badalada que sela a inauguração do ano menino. Os aldeões podiam confiar na contagem decrescente dos programas de variedades das televisões, mas ouviram dizer que esses programas são gravados e que a folia consequente, quando os artistas celebram o começo do novo ano, é um fingimento. Nunca mais acreditaram numa palavra dita por estes artistas. Daí em diante, do epílogo da sua perene vigilância, no arpejo da inata desconfiança, passaram a duvidar da contagem decrescente: quem garantia que as televisões estivessem afinadas com o relógio da igreja, esse sim o zelador do tempo por que se guiam? Era assim que as coisas se passavam naquela aldeia e nas aldeias circundantes. Toda esta gente vigilante desligava as televisões um minuto antes do finar do ano velho, ficando de atalaia às estrondeadas do velho sino, do fidedigno sino. E que não viessem os novatos habitantes, gente de meia-idade exilada da cidade, que se diz conhecedora das modernidades e da tecnologia, contaminar os usos estabelecidos. Os aldeões, arreigados aos usos, estão de atalaia contra os que forem proponentes de adulterações.
Kate Bush, “The Sensual World”, in https://www.youtube.com/watch?v=h1DDndY0FLI
A voz compõe uma fala altiva. Porém, ninguém o ouve. Ninguém o toma pela seriedade que reclama ter. Considerar-se-ia uma farsa, não fosse ter de si uma elevada estima. Não consegue convencer, com aquela retórica baça, disfarçada de impertinente aconselhamento – quando o aconselhamento não foi demandado e se assemelha a uma intrusão. É uma mania própria dos gurus. Têm de si uma imagem mais elevada do que a estatura que trazem consigo. O que ninguém pergunta é se o guru se aconselha com alguém. E se este conselheiro procura aconselhamento – e assim sucessivamente, até se atingir o apogeu com uma qualquer entidade (não necessariamente divina) que reúne em si a nata dos conselheiros. Um dia, alguém proclamou: “Só procura conselho quem não sabe dar conta de si.” Outro contrapôs: “pedir um conselho é ato de humildade. Ninguém sabe de tudo o que apraz saber. Temos de o procurar no exterior de nós.” Talvez o caminho razoável esteja algures a meio caminho. Tanto há quem procure legitimar os atos através de um conselho que vem do exterior, como há os que vivem amordaçados pela hesitação e é através de um conselho que julgam destroçar as dúvidas. E há os que consideram o aconselhamento a última instância, numa confissão de incapacidade – e não há ato de maior humildade do que admitir a incapacidade que turva a lucidez. Não pode ser o estado de necessidade de alguém a determinar a oportunidade para uns charlatães saírem do exílio. Quem tem a cilindrada exponencial não são os charlatães disfarçados de gurus da recomendação, muito embora surjam bem-apessoados. Os que se autoinvestem na condição de conselheiros das almas estão condenados à vegetativa condição da sua minúscula cilindrada. Noutro dia, alguém considerou uma possibilidade: “a lucidez embaciada previne o entendimento das coisas. Não há mal nenhum em estender a mão a quem consegue interpretar o embaraço desde o exterior.” Sem demora outro ripostou, em jeito de desafio: “e como pode alguém que está no exterior do ser se capacitar das suas angústias? Como pode, na posse desse desconhecimento, ousar colocar-se no papel de conselheiro?”
Mão Morta, “Chabala”, in https://www.youtube.com/watch?v=HT_l_v3LTew
Não é uma corrida contra o tempo. As interrogações estão em espera. Não sei como lhes responder. Umas ideias candidatam-se a esteio sem o qual as interrogações ficam desertas. Inspeciono as ideias? Digo, desconfiado: elas não são minhas; poderão ter serventia? Desconfio porque as ideias, não sendo de minha lavra, autorizam-se por empréstimo. Provavelmente, não é o melhor critério. Acrescento: não sendo de minha autoria, como podem essas ideias fornecer o critério válido para interiorizar as interrogações? Uma interrogação medra no imediatismo da anterior: e que ideias pode alguém tutelar como sendo sua criação exclusiva? Sei a resposta para esta interrogação: nenhumas. Mas há ideias tomadas de empréstimo que não conseguem ultrapassar esse estatuto. Sendo manuseadas, sinto-as corpos estranhos. Ideias apenas usadas com um propósito, mas ideias sem convicção, sem serem capazes de me convencer. Posso não admitir a contrafação das ideias assim tomadas de empréstimo (para grande transtorno interior). O que faço com estas ideias tomadas de empréstimo? Uso-as à espera de que, generosas, atribuam uma pista para sondar as interrogações? É que as interrogações continuam formuladas, em espera. Não posso ceder à instigação da urgência. As interrogações estão em espera e assim podem continuar enquanto não houver um tabuleiro à medida para as retalhar. Se a missão é descobrir hipóteses de resposta (afaste-se a possibilidade de encontrar respostas definitivas), não é congruente forçá-las. É preciso saber o lastro que as decanta no exigível apuramento do palco onde as interrogações são servidas a exame. E se as ideias tomadas de empréstimo não forem acertadas, qual é o risco que corro? É o mesmo que toda a gente corre quando decai para maus julgamentos. Só é preciso admitir que o julgamento foi errado, por deficiente pano de fundo. E admitir as dores consequentes ao errado julgamento. Procurando, ou não (depois se decide), corrigir o erro.
Stereossauro, “Verdes Anos” (ao vivo na Antena 3), in https://www.youtube.com/watch?v=v7A1pmlePDA
Provocar o cenário: a neve estava a jeito, pois é do natal que se cuida e pelo natal os contos pedem uma dose de neve, ou não fosse o imaginário natalício a paisagem tomada por um nevão. Mas seria um lugar-comum, e o conto natalício talvez exija uma extração ao lugar-comum. Ou não: por que tem o conto natalício de provocar a sua própria originalidade? Só para convocar a linhagem da originalidade, mesmo que depois se enovele numa retórica e num cenário que a ninguém faz reconhecer o natal?
Continuar a provocar o cenário: um conto para crianças, ou um conto que poupe os infantes? O costume é desenhar as palavras a preceito dos mais novos. Respeita-se a ilusão que os enfeita, ainda a tempo de não serem contaminados por um banho do mundo que desmente o lugar idílico reservado ao natal. Ou alinhavar o conto para a idade adulta, preenchendo-o com o lugar-comum do natal como ele é representado pelos adultos? Ou deixar a imaginação sem rédeas, congeminando um conto de natal que sirva as preferências dos adultos, sem nenhum ponto de contacto com a representação tradicional do natal?
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As renas eram servidas à mesa, substituindo o bacalhau. Por imperativo ecológico. A Europa determinou que as reservas de bacalhau mostravam o perigo de extinção da espécie, decidindo o sequestro da pesca por dois anos. O mesmo estigma não pesava sobre as renas, criadas à solta nos países nórdicos e desligadas das obrigações de transporte de São Nicolau, para irem parar às mesas das famílias lusitanas (para gáudio dos produtores e dos comerciantes de renas, que não estavam à espera deste bodo aos ricos).
Em substituição das renas, milhões de clones de S. Nicolau recorreram a drones. É mais moderno e ninguém pode escapar às vicissitudes da modernidade. O recurso teria outra virtude: os drones não seriam apanhados em contravenção a amedrontar aviões junto a aeroportos, nem seriam usados para fazer da guerra um meio seguro de atacar o inimigo, elevando a hipocrisia de todas as guerras ao máximo expoente.
Não podia ser escamoteado o simbolismo: drones usados para meios pacíficos, a pretexto das necessidades natalícias.
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Era um pranto que parecia interminável. A menina não conseguiu dormir a noite toda. Os pais, sobressaltados, perguntavam a razão de tanto pranto. E ela só devolvia o silêncio, agarrada a um envelhecido urso de peluche que era, como ela, adolescente. Nem ao telemóvel prestava atenção, tendo-se esquecido dele (e os pais que julgaram ser o telemóvel o oxigénio da menina).
Dois dias depois, a menina abriu o livro. Começou por informar que não o fizera antes por respeito ao natal – o respeito que o natal ainda merecia, que era pouco, mas ainda era algum. Soubera que as renas eram abatidas no convencimento que cuidavam da tradicional empreitada natalícia: deixavam-nas levantar voo com o holograma de S. Nicolau no dorso e, quando começavam a esboçar o sorriso por saberem que iam espalhar felicidade consumista entre os mais novos e os demais, eram abatidas por um dardo contendo um analgésico letal. O dardo era disparado desde um drone.
No mês seguinte, a menina, não conseguindo conter a sua raiva, alistou-se no modernaço partido de extrema-esquerda que mais abjurava o capitalismo. Ironia do destino: a neófita apoiante do partido de extrema-esquerda que mais abjurava o capitalismo foi motivada pela entorse do natal.
Antony and the Johnsons, “You Are My Sister”, in https://www.youtube.com/watch?v=vskbBZ1h6ls
O irmão do meio vivia paredes-meias com os dois irmãos extremos. Alturas havia em que invejava a sensatez do irmão mais velho (benefícios da experiência) e a juventude e o hedonismo do irmão mais novo (benefícios da imperturbabilidade). Vivia a meias com as perplexidades precoces do irmão mais novo, quando começou a ser assaltado por dores que seriam próprias da idade do irmão mais velho. Vivia a meias com a promiscuidade do irmão mais velho, quando começou a ser assaltado pelo pressentimento do passado que julgava não ter sido saboreado como devia. Arrematava os ideais que foram profusamente manifestados pelo irmão mais velho, quando este fazia jus à condição. Tinha respeito pela leviandade não intencional do irmão mais novo, quando foi até avançada idade com trejeitos de adolescente. Não era difícil ser o irmão do meio. Os dois irmãos extremos eram os protagonistas. O que deixava para o irmão do meio o cómodo anonimato. Sempre se saiu bem nessa condição. Não se imaginava um ator centrípeto, os olhares constantemente convergindo na sua direção, como acontecia, por razões diferentes, com os irmãos extremos. Até em casa: não era exagero notar o desvelo, ou a exigência implacável, de que eram merecedores os irmãos extremos. A discrição do irmão do meio contrariava os predicamentos de psicólogos amadores sobre a pressão exercida por o irmão do meio ficar emparedado entre os irmãos extremos. Era uma nótula desajustada. E a confirmação do amadorismo dos observadores. Ou a confirmação de que o desenho das generalizações é um ardil de que são vítimas os seus fautores. O irmão do meio sempre teve a companhia da solidão. Em seu solipsismo, não se importava de não ser como os irmãos extremos. O que não era difícil, pois eles eram tão diferentes. Sabia que, na conjura de suas diferenças, o irmão do meio nunca deixaria de ser irmão (e do meio) dos irmãos extremos. Apesar de ter a impressão de não ter vida própria.
Acid Arab, “Malek Ya Zahri”, in https://www.youtube.com/watch?v=abYqLfAGX8E
O sangue fervente irrompe à boca de cena. Congemina-se um ato perfunctório. Não há tempo para a espera. Não há tempo – não há, tempo. Sentimento dividido, sem saber se é a inércia ou a ação que triunfa. Um assomo de contingência toma conta do palco. A redenção não parece remédio, apenas remendo. O sangue continua em ebulição, o córtex cerebral destilando uma constelação de sensações que desagua num pensamento intenso e tempestuoso. As sinapses atropelam-se, desatam o caos que se cheira à distância. Não é embaraço. Quando tudo parece uma convulsão sem remédio, o húmus configura-se ato balsâmico. As mãos mergulham no húmus ainda húmido pela noite que deixou um rasto de orvalho à volta das árvores. E à medida que mergulham no húmus, o sangue refrigera, a combustão perde o pavio. A solicitação não é inexata. Não é impraticável. As empreitadas parecem inacessíveis quando são vistas de longe. As mãos demoram-se no húmus. Vitaminam-se no húmus, constituído terapia. As mãos não se intimidam, não se sobressaltam pela possibilidade de remexerem na matéria viva que aviva o húmus. As mãos também são matéria viva, a matéria intrusa no ecossistema que é pertença de outra matéria viva. Retira as mãos do húmus e nota como estão enlameadas, pedaços de inertes escorrendo vagarosamente, lubrificados pela humidade que é o parente rico do húmus. As unhas estão inapresentáveis. Mas não capitula. O sangue ainda não se refreou na medida desejada. Repete o remexer do húmus, esperando pela quimera que anuncia o pretendido. Ah! Se ao menos o húmus abundasse, não era empreitada encorpada ajeitar os contratempos com as mãos assim tonificadas. Mas o húmus reside na medula que há em cada um. O que está em falta é a imarcescibilidade do corpo na medula que merece ser demandada. Esse é o húmus interior em falta. O melhor húmus.
Sharon van Etten, “Jupiter 4” (live in Austin City Limits), in https://www.youtube.com/watch?v=4nwhjcAytqM
Aqui chegados, a fome tumular pedindo exílio depois de serpenteada a estrada que rasga as montanhas, um apeadeiro numa pequena aldeia serrana. O único estabelecimento aberto convida a amesendar, o rusticismo do lugar como acolhedor convite a uma interrupção na viagem. Não há luxos, entre uma decoração que mistura o espartano com motivos alusivos ao tipicismo alpino que domina a paisagem. Chocalhos de vacas, pedaços de urze ornamentando as jarras centrípetas, aparelhos rudimentares para a fabricação do queijo, algum fumeiro pendido sobre a lareira, a ganhar forma. Pedimos vinho da casa. Tinto. Não pedimos mais nada e os petiscos sucedem-se, sem dolo. A diferença de idioma não estorva a comunicação. Ficámos a saber das tradições do lugar, do número de habitantes, de como o envelhecimento foi preposterado com alguns mais novos que regressaram à terra dos avós, cansados das grandes cidades gentrificadas onde levavam uma existência insípida. Ficámos a saber do recolhimento forçado quando o inverno morde forte e a aldeia fica cercada por nevões demorados. Ficámos a saber alguns segredos da feitura dos queijos – isto interessa-te, particularmente, que eu não sou dado à queijaria. Ficámos a saber segredos, o que não constitui surpresa: os donos do bistro sabiam que estes forasteiros não seriam concorrência, estavam apenas de passagem, e um laivo de charme podia ser capitalizado a seu favor – podia ser que os forasteiros perdessem a cabeça com os produtos locais e arrematassem um pecúlio significativo. O vinho continuava a afluir, agora com mais dois copos que se juntavam aos comensais. Éramos as únicas pessoas a refeiçoar. Demorámo-nos até à véspera do entardecer. Era preciso, para não sermos apanhados em dolosa infração do código da estrada, depois de todo aquele vinho fruitivo. Despedimo-nos dos anfitriões. Já íamos a caminho do próximo hotel quando demos conta que não tomamos conhecimento do nome dos anfitriões. Ficámos sem saber se a impessoalidade foi propositada, ou o simples fruto da distração de todos os comensais. Também não importava. A paisagem bucólica superava o demais.
Eels, “I Need Some Sleep”, in https://www.youtube.com/watch?v=Fy8hK3blQOQ
O passado sobposto ao futuro – ou o futuro que se agarra às raízes do passado. Uma paisagem que contraria a desolação, dizem. Gente havida que deixa fundações imorredoiras, contagiando os que lhes sucedem. Um legado.
Evocado um legado, toda uma constelação é deixada em favor dos futuros. Desse módico, do somatório de todos os módicos originários de diferentes pessoas, diz-se que o mundo avança. Diz-se que os futuros não podem esquecer os pretéritos, pois deram-lhes, em inestimável legado, parte do chão em que repousam, parte do chão que os futuros deixarão em legado aos futuros depois deles. O devir é um labirinto de legados que o amarra ao transato.
Fica a impressão que os legatários fazem do legado uma missão. Não se antecipa a hipótese de os que são cuidados como fautores de um legado não tenham tido o legado em vista quando fizeram o que fizeram para depois ser considerado um legado. Ou: quando alguém se distingue e é mais tarde reconhecido como um importante dignitário para memória futura, não ocorre aos zeladores do legado que o seu sujeito não tenha cuidado da hipótese de deixar algo em legado. Não se coloque de parte a hipótese de haver quem levante a ponta do véu sobre o que, ainda antes do tempo (isto é, do reconhecimento por outros), repute como merecedor de entrar no olimpo dos legados. Na diversidade da espécie, há de haver um lugar, e talvez não despiciendo, para os pretensiosos.
Parto de outra hipótese: nem todos se desprendem da individualidade para se reconhecerem um ente que só faz sentido se for inserido num grupo. Nem todos pretendem o reconhecimento exterior. Nem todos, ao serem autores do que posteriormente possa ser considerado um legado, tratam da autoria da proeza como se depois ela vier a ser reconhecida como legado. Há quem passe ao lado destas sinecuras. Se o são em vida do próprio, pode ele não conferir importância ao reconhecimento exterior. A centralidade do seu eu previne a contaminação do reconhecimento exterior. Se a sinecura é póstuma, é inútil até para os que muito labutaram para dela serem credores.
Um feito começa sempre por ser do domínio privado, exclusivo do eu que o tutela. Quando acontece transbordar da esfera do eu e merece apropriação do todo (ou de uma qualquer parte do todo), é um legado que só acontece depois do acontecimento que o legitima. Um legado só interessa a quem o recebe. E um legado só é legado quando os futuros assim o ajuízam.
Apparat, “Goodbye”, in https://www.youtube.com/watch?v=SjliSRyTjB8
Os outros é que eram sociopatas: eles é o que o marginalizavam, não o deixavam sentar-se à mesma mesa onde se banqueteavam. Visto por outro ângulo, a leitura obedecia a uma grelha diferente: ele é que era o sociopata, ele é que fora exilado pela maioria. Todavia, recusava-se a ser um caso irreparável de persona non grata. Elaborou: temos de começar a perceber se a declaração de persona non grata atinge o âmago do ser; pois se quem o declara non grata persona é, por sua ótica, persona non grata, há aqui uma duplicação de estatuto que o anula, reciprocamente. De repente, uma centelha despontou no fio do horizonte: e se os personae non gratae não o tivessem destinado ao papel de persona non grata, teria ele devolvido a cortesia considerando-os personae non gratae? Não quis responder ao desafio. Não o disse, a não ser quando interpelado pelos densos corredores do pensamento, mas a resposta não honraria o que dizia ser seu apanágio – como poderia ter-se, de si mesmo, uma grata persona? Talvez este fosse o ângulo errado. Não pôde deixar de arrastar o pensamento para um labirinto, possivelmente sem saída: e se não interessam os outros, o que importa se alguém nos abjura como persona non grata? E se não atribuímos crédito ao degredo que assim se nos sobrepuja, porque ripostamos com armas iguais e devolvemos a comenda de persona non gratae a quem nos agraciou com semelhante epíteto? Talvez o ângulo que assim se presta não seja heurístico. E admitiu sair da peleja, enovelado por um pensamento labiríntico, com a sensação que não é agradável saber-se persona non grata. A menos que – no fio infinito do pensamento especulativo – sejam gratae as personae que nos colam o rótulo de persona non grata. E a menos que – para findar a elucubração – como vingança, essas gratae personae sejam transferidas para o lugar onde habitam as personae non gratae. Não ficamos credores da lucidez e da coerência. Antes ser persona non grata do que gratuitamente elevar outros ao estatuto de non gratae personae.
Allen Halloween, “Na Porta do Bar”, in https://www.youtube.com/watch?v=iLjsGbG8A7Q
A noite tirada do tempestuoso açambarcar do sono: a cabeça pesava mais do que o corpo demais e o pensamento custava a obedecer à ignição. O pensamento doía (ou era a cabeça, não chegou a discernir). Apetecia deixar o corpo na cama – afinal, estava lá fora um céu plúmbeo e a chuva fazia-se notar como se fosse preciso que as pessoas dessem pela sua existência. Mas havia horários a cumprir. E o corpo teimava mais do que o pensamento, ordenando ao pensamento (quando devia a ordem corresponder ao sentido inverso) para se mexer em rima com o dia que começava a ser tarde.
Era escusado dizer que o dia estava entornado desde o começo. Escusado seria dizer, as coisas começaram a ter um tapete que não era a preceito: verteu a chávena de café com leite nas calças que seriam as do dia; tinha-se esquecido do lixo e o vento noturno considerou a hipótese de o espalhar pelo jardim, semeando uma paleta de caos; logo à saída de casa estava um acidente de viação e as filas de trânsito compuseram-se mais cedo, como se mais gente tivesse saído mais cedo e tudo fosse mais cedo para todos chegarem mais tarde; antes do almoço, soube que o projeto que apresentara às chefias não foi considerado, sem ser transmitida fundamentação da recusa (um seco “recusado”, com uma assinatura ilegível, mandatava a decisão superior); o almoço não caiu bem e a meio da tarde, sentindo-se com náuseas, teve de vomitar, sujando o segundo par de calças do dia; antes de sair do trabalho, soube que um amigo de infância morrera (mas este era o pior dia para resgatar as memórias de infância).
O dia só conheceu a sua carantonha irascível. O silêncio dos colegas de trabalho quando ele estava presente era sintomático. Durante o dia, as poucas vezes que falou foi para: dar uma reprimenda ao chefe, deixando-o atónito; sussurrar repetidos impropérios, ou porque uma tarefa não combinava com o esperado, ou porque se irritara com uma notícia, ou porque ouviu dizer que a estagiária deleitosa foi jantar com um sujeito imprestável que tem escritório de advogado no terceiro andar, ou porque recebeu uma mensagem no telemóvel que o deixou tão iracundo que um termómetro subiria ao rubro se fosse pousado nas suas imediações. Pelo dia fora, só comentários secos, desagradáveis, às vezes descorteses, tiveram o condão de as pessoas deixarem de lhe dirigir a palavra. “Não faz mal”, interiorizou, enquanto olhava com desdém para os que partilhavam aquele espaço.
Perdeu a conta dos impropérios e dos esgares de desprazer e das juras de vingança que, estivesse em dia de perspicuidade, soavam a sordidez. Até ele foi vítima dos doestos proferidos ou simplesmente pensados: era só as coisas não quadrarem com o pretendido e autoinfligia-se penosamente: “és um merdas, não serves para nada.” Ou “bonito! Agora só te falta saltar da ponte para compor o ramalhete.” Ou, ainda, “por que esperas para te maldizer, que este dia de inépcia não é tão diferente dos demais?”. Ou “não prestas, és um inútil”, proclamado repetidamente. Sabia-o: não era justo exteriorizar toda a fúria, se ele era a pior pessoa de todas.
Aguardou, impacientemente, pela noite que se seguia. Recusou as preces que teriam sido notificadas como sugestão do pai. O melhor era afogar a cara no uísque, para ver se o resto era esquecimento.
Michael Kiwanuka, “Final Days”, in https://www.youtube.com/watch?v=jOtqTcFknvY
- Como dizemos, em linguagem gestual, que estamos admirados?
- Que importância tem isso? O teu esgar não é a bandeira da admiração? Não é suficiente?
- Mas devia haver um compêndio para a decifração dos gestos e dos meneios dos rostos. Uma correspondência entre gestos e meneios dos rostos e palavras. Para que não ficasse nada por dizer no rescaldo dos gestos e dos meneios dos rostos.
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Não sabiam da existência de um perito, assim como os há para cuidar das maleitas das almas, que de si tem uma elevada consideração como exegeta dos rostos. Já fora tempo de o perito reclamar cátedra no espaço público, assinando sentenças certeiras sobre a significação de esgares, perante a anestesia quase geral. Caído em desgraça, acantonado no seu laboratório, o tratador de rostos podia servir de tradutor das dúvidas sobre a cor gestual do pasmo que toma conta das pessoas.
O oblívio do exegeta dos rostos era, porventura, uma das maiores injustiças da sociedade hodierna.
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- Não te percebo. A sério, não percebo. Se as palavras às vezes têm múltiplos sentidos, para que precisamos de dar à complexidade mais pano para mangas com um compêndio para gestos e esgares?
- A pergunta encerra a sua resposta. A complexidade não está em haver mais um compêndio. Está no que o compêndio pode revelar.
- Na hipótese de incerteza, tiras a limpo. Perguntas o que significou o gesto ou o esgar, para não ficarem hesitações a pesar sobre ti.
- Eu sei que tenho essa possibilidade. Mas, o que custa termos um compêndio que dispensa essas interpelações?
- Uma boa conversa não tem sucedâneo. E se a pessoa que tutelou o gesto ou o esgar não corresponde aos padrões vertidos no compêndio? O compêndio levar-te-ia a conclusões precipitadas, erradas.
- És contra manuais de instruções...
- Não sou contra nem a favor. Depende dos casos. Se me pedires para instalar uma cadeira de escritório, preciso do manual de instruções. Dispenso-o para a hermenêutica de esgares e gestos. A interpretação fica por minha conta. E se dúvidas sobejarem, interpelo quem devo interpelar. Uma clarificação é imbatível. Superior a qualquer compêndio.
- Ninguém te obriga a seguires o compêndio...
- Sei-o bem. E ninguém me impede de ter uma ideia sobre o compêndio de que falas. A minha objeção é que um compêndio dessa natureza reduz as pessoas a categorias. Estereotipar é um crime contra a diversidade da espécie. Não creio que seria uma obra com coutada na ciência. Os esoterismos merecem, no máximo, sebentas.
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Pelo entardecer, o murmúrio das vozes silenciava os gestos e as expressões ditas pelos rostos das pessoas. As vozes sobrepunham-se e estalavam nos ouvidos, desviando o olhar para a copa das altas árvores despidas pelo outono.
As árvores também têm gestos, rostos consoante as estações e o tempo que faz lá fora. Ninguém pergunta pelo seu estado de espírito. Sobre as árvores, há compêndios de botânica que não inquirem sobre os gestos e os esgares.
Talvez fosse do entardecer, da luz desmaiada que pressagiava o primeiro fogacho da noite. O pressentimento da escuridão fermentava um olhar desconfiado. Quem, em sua lucidez, podia desejar um compêndio sobre esgares e gestos?
Happy Mondays, “Wrote for Luck”, in https://www.youtube.com/watch?v=YNn51e11_dQ
“O mexilhão que se lixe”; ou “o mexilhão é que paga”. Dito por bocas diversas: o povo, vendo-se a si mesmo na condição de mexilhão que sucumbe às catilinárias dos poderosos, lamentando que os sacríficos estejam aos seus ombros; o poderoso, protegido pelo estatuto e pela abastança (sendo o primeiro caucionado pelo segundo), rematando, com desdém, que os das castas inferiores devem pagar a fatura porque o preço dividido por uma multidão custa pouco a cada um dos integrantes.
Mas o mexilhão é maior do que o berbigão e, no entanto, este está acima na escala dos valores: o preço por quilograma do berbigão torna-o mais valioso. É um paradoxo. O mexilhão tem mais envergadura, devia ser mais forte na escala de sobrevivência das espécies. Mas é o berbigão, mais miudinho, que tem melhor cotação. Não se disputa a teoria de que a força não é uma medida exata do tamanho das espécies. Contudo, como entender que o mexilhão tenha o triplo, ou o quádruplo, do tamanho do berbigão (se as medidas não me falham) e seja por este dominado?
A teoria presta-se à experimentação. Continuando na ordem dos bivalves, a conquilha está mais cara do que o berbigão. E a conquilha é mais pequena do que o berbigão. Se a experimentação incluísse uma fauna afim, descobrir-se-ia que o meixão (enguias no estado infante) ainda é mais dispendioso. Mesmo que não passe de uma criatura acabada de desabrochar, com as forças a serem edificadas no seu tenro corpo. Não se vê como um microcosmo pode ser dominado por espécies a atravessar a fase infantil. E se a análise prosseguir, a páginas tantas concluir-se-ia que são ovas de estragão que encimam a bolsa de valores.
Só por passividade do mexilhão é possível ser oprimido pelos berbigões, conquilhas e meixões. Se é o mexilhão que paga as favas dos outros, e se o mexilhão é um exército numeroso e se apresenta corpulento, é porque se trata de um exército tomado pela letargia, um exército desarmado. Deixa de ter significado o lamento do mexilhão, ao lamuriar-se que é o mexilhão que paga. Paga porque não se dispõe a contribuir para a mudança de estatuto. É o preço da inércia.
Falta a adaptação semântica, no domínio das expressões idiomáticas, para começarmos a chamar “berbigões” aos ricos, “conquilhas” aos magnatas e “caviar” aos que estão no topo das listas que inventariam os abastados. Pois o mexilhão já tem lugar próprio nesta safra.
Caribou, “Home”, in https://www.youtube.com/watch?v=LX30jRKcmbw
“Quais são os fumos da infâmia, as histórias soezes que tatuam os seus intérpretes?” Se havia procedimento que desprezava, era o das lições de moral, necessariamente ungidas de superioridade. Dele sabia ser um exercício de estultícia, a incapacidade para a autorrepresentação e a perceção das coisas. Ele há quem seja perito em julgamentos das almas, criteriosamente ocultando o julgamento de si mesmo. E são os que mais depressa correm à escadaria onde se atropelam os que de si mesmos se julgam poços infindáveis de virtudes; ou que, não se reconhecendo como tal, depressa arregimentam os outros para juízos sumários que os arrastam para águas pouco recomendáveis, sendo essa a cosmética a jeito para ocultar as suas fragilidades. De vez em quando, a interrogação, ouvida num desinteressante diálogo numa esplanada desde a mesa do lado, instala a corrosão no pensamento: “quais são os fumos da infâmia, as histórias soezes que tatuam os seus intérpretes?” Não lhe podia ocorrer interrogação mais imprudente. Não era desprezível perguntar, em jeito de pergunta-resposta à interrogação da esplanada, se a altivez do julgamento não é a confissão de culpa de outras culpas que a vergonha (ou a falta de noção) impede de materializar. Se ao menos houvesse um acesso de humildade e a interiorização das falhas impedisse as pessoas de assinarem sentenças, e ainda por cima categóricas, sobre os outros; se ao menos houvesse um módico de respeito interior, para dele medrar o convencimento de que ninguém pode ser juiz dos outros. Mas é tudo ao contrário. Quando o olhar se exterioriza como ardil para disfarçar as fragilidades próprias, ninguém é narcisista. Os demónios assaltam os outros e os olhares vertem-se sobre eles. O juízo que assim se legitima é a pueril certificação da perfeição. Se forem somadas todas estas perfeições irredutíveis, sobra um otimismo antropológico capaz de fazer corar os mais otimistas. Ao menos isso. Que aos asnos que de si têm este retrato à prova de impurezas, só se pode dizer: “fique com o troco”.
Phosphorescent, “Song for Zula”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZPxQYhGpdvg
Subo pela montanha como se fosse uma descida, como se no seu epílogo estivesse uma fonte prometida com uma quimera. Não emudeço. Sou um repositório abundante de palavras, entoadas de todas as formas, páginas entreabertas para os estados de alma. Subo ao dorso de uma música, como se não fizesse mal locupletar direitos de autor.
Observo. Observo meticulosamente. As diferentes camadas do mundo, os olhares volúveis, os gestos significativos, os fins que se embaciam no mar de impossibilidades, o desejo contido, as oportunidades sem acesso, a maresia que irradia dos rostos a contento.
Observo. Observo cuidadosamente. Os temas em sobressalto, cavalgando sobre a distopia dos farsantes. As miragens que se enquistam nos cabais fingimentos. Os pleitos sem manutenção. As conversas que soam a indigência, apenas porque está convencionado que as pessoas têm de socializar. A abjuração do silêncio, a injusta abjuração do silêncio, quando o silêncio é a prolixa medida de comunicação. A falta de coragem, ou a bravura contida pelo esconjurar da loucura gratuita.
Tomo em minhas rédeas o observatório de que fui fautor. Tiro a desordem como ordem e combino as mortalhas que saem na taluda dos acasos. Mitigo os lados avulsos como o rosto escondido de uma lua por caiar. Observo as crianças, observo como nasceram para a algazarra infantil, a não pueril medida da sua maturidade oprimida. Tiro a métrica de uma boémia sem boémios na noite branca, a noite articamente contínua – o sopesar dos medos amestrados contra a cólera da noite. Amontoo no sepulcro da memória os vestígios imprestáveis. Decido com eles fazer o que se faz nos sepulcros, deixando verter o refrigério do tempo imprescritível.
Observo. Observo com o magistério do observatório não altivo, o observatório que não precisa de um miradouro para ser observatório. Congemino as peças alcatifadas na nuca do pensamento, tirando com o avesso das mãos o sal fértil do pensamento assim não escondido.
Observo o que sou como observador. Sei que a meta-observação não me deixa ser se não feitor de um imparcial escrutínio. Pois sei que é em mim que começa o julgamento. E em mim acaba. O observatório é uma auto-peregrinação. A convolação de uma alma inquieta contra os malefícios do mundo, contra conspirações mudas que se disfarçam de vultos sem espessura.
Deste que é meu observatório, o legado de mim ao que de menos de mim interesse ao resto do mundo.
TLC, “Waterfalls”, in https://www.youtube.com/watch?v=8WEtxJ4-sh4
De um espaço infinito sussurrava uma voz perene, teimando na toleima da demanda insistente. Tudo se passava no meio de um palco embotado pelo nevoeiro persistente. As vozes sobrepunham-se, sem ordem, e da competição de pregões (que assim pareciam as falas entrecruzadas), sobejava um odor a obstinação. Diziam, uns aos outros: “a capitulação fica para os mais fracos.”
Em comandita, escavavam o chão humedecido pela noite. Só com a ajuda das mãos. Ouviram dizer que aquela terra escondia tesouros miríficos. Ainda bem que o outono estava pródigo, neste ano. Se fosse em anos anteriores, quando o outono se postergava numa tibieza indelicada, o solo estaria duro e as mãos teriam dificuldade em escavar o chão. Um deles exclamou: “assim, é sem espinhas!” Os outros, mais comedidos, não traduziram a exclamação em esperança. O chão simplificado não garantia a descoberta do tesouro.
“Seja como for”, acrescentou, em voz de lamento, um dos garimpeiros da fortuna, “estamos aqui unidos no mesmo propósito. Talvez seja esta a nossa verdadeira fortuna.” Imperou o silêncio. Estavam todos concentrados na demanda, metendo as mãos na terra amolecida pela chuva abundante das semanas anteriores, todos tomados pelas imagens mentais que atravessavam a tela imaginária enquanto persistiam na função, as imagens impregnadas de abundância. Não se perguntavam por que era necessária a abundância. Essa fora a sua educação. Nos tempos da escola, foram instruídos que só vinham nos livros da História os que alfandegaram uma fortuna qualquer.
(Nenhum deles sabia quem fora D. Sebastião. Os alunos daquela geração foram poupados à humilhação da desesperança.)
As covas eram cada vez mais fundas. Alguns deles tinham cavado tão fundo que já não eram visíveis do exterior. Entusiasmado com a avidez da escavação, o comparsa que houvera dito “assim, é sem espinhas!” repetiu o preceituado: “assim, é sem espinhas!” Desta vez, acrescentou outra exclamação: “Não desistam, companheiros, o tesouro está próximo das nossas mãos!” Os outros continuavam em silêncio. E continuavam a escavar, mais fundo, os dedos encardidos pela mistura de terra enegrecida e de água, alguns notando o sangue a desprender-se das unhas. Do exterior, só se conseguia discernir oito covas bordejadas pelos montes de terra amolecida extraída com as mãos dos irredutíveis operários em demanda de uma fortuna qualquer.
Ao amanhecer, um silêncio compungido tomara conta do lugar. Não havia movimento. Os oito comparsas, exangues, jaziam no fundo das fundas covas escavadas. Eram cadáveres. Confirmou-se: o tesouro estava naquele ermo lugar. Eram os oito comparsas que emprestaram seus corpos ao lugar assim enriquecido. Sem espinhas.
God Is an Astronaut, “Mortal Coil” (live at Warsaw), in https://www.youtube.com/watch?v=Vp-a4FKo9yM
Os dias finais: umas férias, quando o lugar passou a ser extenuante e a casa convoca o regresso. Uma vagarosa peregrinação pelos lugares que já parecem gastos. E, porém, continuam a ser lugares vagamente conhecidos. Pelos dias finais, emulsiona-se a pertença ao lugar que não se julga ser fiel de uma pertença. Os dias finais exacerbam este paradoxo, para a divisão interior açambarcar a alma.
Ou os dias finais antes da consumação de uma empreitada. O pressentimento do encargo enfim resolvido não aplaca uma certa angústia do tempo, com o tempo. A empreitada ainda não está consumada, falta um pequeno quase, o parecer que se soma à definitividade da empreitada. E, porém, é como se fosse assunto encerrado e sobrasse, a destempo, a agonia de um espaço por preencher. Os dias finais antecipam essa agonia e podem furtar atenção preciosa aos passos derradeiros que se esperam até ao consumar da empreitada.
Ou os dias finais na casa que deixa de o ser. A casa a caminho de ficar vazia. E, ao mesmo tempo, a casa cheia, quando contemplada com uma fusão de nostalgia e de alívio. Nostalgia das memórias da casa habitada que não ficam dentro dela, por ser um objeto inerte. As casas só não são objetos inertes quando não estão contaminadas pela terrível impressão dos dias finais. Quando são habitadas por quem lhes empresta vida, as casas têm vida. Na véspera da sua desocupação, em sucessivas levas de material transitado para outro lugar que passa a ser a nova residência, os dias finais são uma custosa tatuagem nos desabitantes, o esvaziar da casa como se ela estivesse a perder vida, minuto atrás de minuto. Até se virar as costas à casa que passa a ser de outrora e a vida renegoceia-se.
Os dias finais, antes que sejam os dias infantes de outra coisa qualquer. Os dias finais não são finais. São o emolumento da vida que se movimenta no espaço onde a vontade e a sua exterioridade se misturam. Os dias finais acontecem sempre. Pode ser na ramerraneira estafeta do calendário, a sucessão dos dias que se agigantam no orvalho da alvorada. Pode ser na maravilhosa equação das mudanças, quando a meta se avizinha e os dias finais parecem metros que emagrecem até ter a mão na meta desejada.
Parquet Courts, “Freebird II”, in https://www.youtube.com/watch?v=jHfOqqQ1DLQ
#3 – Odeio convenções. Odeio tudo o que tenha o selo de uma trela e que essa trela seja imposta do exterior.
#1 – Sempre que posso, escapulo-me de convenções. E não é por prazer lúdico, ou por espírito de contradição.
#3 – O mal é que esbarramos todos os dias em convenções. Até nas minudências, quase sem darmos conta, acabamos cúmplices das convenções por não as denunciarmos.
#1 – De acordo! Os sinais de trânsito; os cumprimentos às pessoas conhecidas, sob pena de sermos mal-educados; a roupa que não pode ser de certa forma; a assinatura exigida para validar contratos; a gorjeta nos restaurantes; a deferência pelos figurões; a noite para dormir (ou a noite para a boémia, segundo os boémios); a esmola obrigatória, sob pena de sermos arrastados para a lama da insensibilidade social; e o mais que se possa inventariar.
#2 – Já tiraram um minuto para pensar como seríamos se não nos regêssemos por convenções? Imaginam o transtorno contagiado às relações sociais? Imaginam-se reféns da anomia?
#1 – Essa é outra convenção, a convenção das convenções: se não formos obedientes às convenções registadas, se todos assim atuassem, o caos tomava conta de tudo. Esse meta-argumento é cinzelado escrupulosamente para lapidar as arestas dos que ainda se mostrem renitentes às convenções. Quando já não houver arestas e todos, sem exceção, respeitarmos as convenções, será um mundo perfeito o que se descerra diante dos nossos pés. Aconselho a desconfiança metódica.
#2 – Não uses da fina ironia para falar de um assunto tão sério.
#3 – Outra convenção: não se escarnece das “coisas sérias”, mesmo antes de alguém ter isolado na fauna de conceitos o conceito de “coisa séria”.
#1 – As convenções são uma das causas dos atrasos em que medram as sociedades. E, depois, sua consequência. O atraso impede que se certifique a liberdade, encarada como um inadmissível ato de desrespeito.
#3 – Eu não tomo por minhas as convenções firmadas. São as convenções dos outros.
#1 – Nem eu.
#3 – Nós somos como gatos assanhados, sem covil, sem trela a quem responder. Fugimos das convenções e apraz-nos estar à margem de qualquer reconhecimento, da obediência a convenções.
#1 – Não é fácil. Às vezes, endossam-nos a etiqueta de sociopatas. Porque não nos revemos nas convenções e delas dissidimos.
#2 – Queria que ficasse registado em meu conhecimento o seguinte: quando se afastam das convenções, alinhando nos seus antípodas, escolhendo outro albergue onde afinam as vossas existências, não estão a escolher uma convenção, uma convenção que não quadra com as convenções dominantes, mas uma convenção?
#1 – Essa agora! O simples afastamento das convenções é a marca registada da nossa insubmissão. Um insubmisso não perfilha convenções.
#2 – Julgo que daí resulta uma convenção. Uma convenção de sinal contrário, é certo, mas uma convenção.
#1 – Não percebo o raciocínio.
#2 – Quando repudias uma convenção, estás a adotar um comportamento que se lhe opõe. Logo, estás a fabricar uma convenção, nem que seja privativa do teu pensamento, ou a subscrever uma convenção contracultura que não deixa de ser uma convenção. Fora do sistema, possivelmente ocupando o lugar que é o seu antagonismo. Mas uma convenção.
#3 – Acreditas no que dizes? Parece vazio de significado. Parece um raciocínio devidamente incompleto.
#1 – Continuo a discordar: o repúdio de uma convenção atira-me imediatamente para as margens. A insubmissão é o lacre das margens. Como podes considerar que esta escolha corporiza uma convenção?
#2 – Todos somos feitos de vontade e de escolhas, o estuário da vontade. Se escolhes rejeitar uma convenção, é porque as tuas ideias se incompatibilizaram com essa convenção. Afastada a convenção, segues por outro caminho, organizado ou aleatório. Mas é um caminho, uma convenção. Poderás não gostar do rótulo, poder-lhe-ás chamar algo diferente, mas na minha linguagem não passa de uma convenção.
#3 – E se for mais radical e proclamar que repudio todas as convenções e não escolho, em sua substituição, nada? Um niilismo convencional não é suficiente para estilhaçar a tua teoria?
#2 – Não. Se não abraças nenhuma convenção contracultura, o teu comportamento é um padrão. Teu. Logo, a uma convenção. Se insistires num deserto ontológico, esse deserto ontológico é a tua convenção.
#1 – Por que não defines convenção, para sabermos se estamos a falar do mesmo?
#2 – Se há convenção enraizada é a impossibilidade de definir convenção como conceito.
#3- Agora fiquei com a impressão de que o teu argumento é a negação das convenções. Afinal, estamos em sintonia.
Balthazar, “Fever”, in https://www.youtube.com/watch?v=z2X2HaTvkl8
Terçam-se as armas no tabuleiro onde se dispõem as peças, e o jogo espera. Antes do jogo e já se terçam as armas. Ninguém tem medo de perder. Ninguém tem medo de se precipitar contra a moldura do jogo e jogar as peças antes do tempo. O jogo joga-se antes mesmo de começar.
Quem vai ganhar o jogo que pressente o jogo? Talvez seja a pergunta mais irrelevante que se possa formular nos preparativos para o jogo que vai ser a contar. Parece que o jogo válido é o que tem lugar antes de o jogo começar. Um jogo antes do jogo nunca deixou de ser um jogo sem folha de serviço. É um jogo a contar para o troféu do nada. E, contudo, parece um jogo de morte. As forças esgotam-se e os intérpretes parecem consumidos por uma loucura que os cega, indiferentes ao jogo que conta.
As estratégias também contam. As estratégias entretecem-se num jogo à parte, lateral ao jogo a contar. Sopesam-se nos ardis dos adversários. Esboça-se uma autêntica teoria dos jogos. Um dos adversários dá um passo para deixar um engodo ao outro. Supõe que este tem capacidade para antecipar o gesto e dá um passo que é oposto do que julga ser o gesto antecipatório do adversário. Não consegue contar se este antecipa como deve ser o seu gesto antecipatório. Enredam-se numa teia de suposições e de adivinhações do gesto do adversário e da sua reação antecipatória aos gestos do outro. A certa altura, já não sabem o seu próprio nome, tantas as hipóteses desdobradas em milhentas hipóteses em cascata. É o jogo inútil: as elucubrações exaurem as forças e os adversários perdem as referências, as próprias e as que julgam ser as do outro, quando começa o jogo a contar.
Um dos intérpretes vai a jogo, ao jogo a contar, a roçar os limites da decadência, tantas as forças consumidas no estéril jogo prévio ao jogo a contar. Diz coisas sem sentido. Parece prostrado. Não esconde o desânimo. Dá a entender que sobram poucas forças para ir a jogo. A sua aparência parece sinalizar a mão estendida na direção do adversário, como quem convoca a compaixão do outro. É como se estivesse a suplicar para o outro não jogar um jogo que sabe estar ganho, à partida. Como se estivesse a proclamar a sua falta de comparência. O adversário expande o sorriso. Sente o odor do triunfo antes de o jogo ter começado. Não contempla a hipótese de transigir com o adversário, no gesto de compaixão rogado. Será implacável. Espera uma vitória contundente, num jogo que não terá demora.
A imagem do desequilíbrio é uma farsa. O gesto do intérprete que veio a palco exangue, como se estivesse derrotado antes do começo do pleito, foi propositado. Um disfarce. Uma cilada, para convencer o adversário da desigualdade de forças no tabuleiro. Para que este se convencesse que a vitória estava garantida. Mas o jogo foi virado do avesso. Num golpe de asa, o que de si fez uma imagem de derrotado assestou um golpe certeiro, duro, que desfez a nada a reação do sequaz da altivez que já contava as favas da vitória. Inerte e perplexo, já nem se levantou do tabuleiro.
Fez-se a profecia: era melhor o outro não jogar o jogo que sabia à partida estar ganho.
Llama Virgem, “Portugrall”, in https://www.youtube.com/watch?v=V3PColi1-nc
Não é preciso o avental. A pele deita-se sobre as coisas que o mundo encomenda à fertilidade. A pele precisa de saber como é a pele dessas coisas. A pele precisa de saber como é pele nessas coisas. E elas não enjeitam os poros macios que sobre elas se deitam. Da fusão resulta o quimérico observatório de onde se compõem as estrofes altivas, não simuladas, genuínas. Essas estrofes evaporam os fumos temíveis que podiam ser a fraqueza de tudo, não fossem os poderes lisérgicos das estrofes. Elas contêm o predicamento da pele heurística. Sobem à boca de cena com a mesma voracidade de um vulcão, mas sem a sua força catastrófica. Em vez dos homéricos e inúteis gravames do porvir, sobem a palco os intérpretes desinteressados, despojados de roupas e sem pudor da nudez, as suas peles como o sol genesíaco sem espera. As coisas do mundo ganham um banho de pele. Já não são inertes e frias entidades sem nome. Ganham a vida da pele que sobre si se deita. De repente, às coisas assim ungidas vem um reflexo de vida própria, por osmose – por bem-vinda contaminação da longanimidade da pele em si deitada. À pele assim benfeitora fica o gesto de humildade. Não reclama créditos. Não reclama um púlpito que é a negação do ato cometido. As gentes ficam a saber, sem precisarem de tutela escolar, que não somos fadados para o egoísmo. Sabem que se formos desinvestidos do narcisismo que é o tenebroso ardil dos espelhos, temos a safra maior que é o autorreconhecimento. A pele continua a ser a mesma. Ainda que tenha dado de si uma importante parte às coisas que há no mundo merecedoras do seu proselitismo. E as coisas, embebidas nas cores garridas da pele nelas embebida, são reinventadas por dentro da sua bondade.
Moullinex & Xinobi, “Azul”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZK-Y2g14Fng
É só mais um dia. Um dia, o que passou. Olhas para as horas precedentes e parece que foste passageiro de uma vela hasteada contra o vento vadio que vinha do mar. Dirias que pouco lembras do dia, mas trazes o odor da maresia colado ao corpo. Se escrevesses um diário, ou se tivesses por hábito inventariar os factos que se destacam da monotonia restante, dirias que foi um dia puído. Não ficaria anotado a cor viva nas faldas da memória.
Nem sentes cansaço, ou sono, como é habitual a esta hora já avançada do dia, quando o dia entra na senescência e, por mérito da noite, se enlaça com o dia seguinte, nascente na mesma noite soturna que serve de túmulo ao dia que se apresta a ter demarcação num estuário ao acaso. Não te apetece recolher aos aposentos, como é habitual. Não darás engodo à rotina com que gastas as derradeiras horas do dia a convocar o sono. Apetece-te ser observador dos espécimes que vagueiam na noite. Os boémios e os não boémios, para notares a diferença entre os que tiram partido da noite para dela fazerem a barriga da vida e os outros, mergulhados na noite por necessidade. Apetece-te ser observador da falência do dia.
Sais a horas impróprias – é o teu relógio biológico, interno, a protestar. Não sabes por onde vais. Vais, apenas. Seguindo o chamamento da noite, em seu feérico exemplar atribuído aos marinheiros destas marés. Sempre soubeste que não eram marés ao teu jeito. Não desistes da encomenda. É só mais um dia. Não sabes se foi um dia mau, ou um dia bom. Olhas para o relógio: o dia decai nos seus últimos suspiros. Ficas à espera do seu final, quieto, à entrada de uma estação do metro na companhia de um segurança, que balbucia linguagem codificada (e castrense) ao intercomunicador.
(Só conseguiste perceber aquelas palavras, talvez de alívio – por serem sinónimo de fim do expediente –, em que o segurança comunica que só faltam três minutos para fechar o acesso à estação.)
Já é um minuto depois da meia-noite. O dia foi deposto e, em seu lugar, fala um dia acabado de nascer. Ao dia sucede um dia. Não notas diferença. A noite é a mesma, as pessoas que voluteiam nas ruas são as mesmas, com os mesmos rostos e a continuação das mesmas frases. Se ao menos se confirmassem as convenções e, com a meia noite a mostrar-se nos relógios, o dia vindouro rasgasse do calendário a folha correspondente ao dia sepultado, talvez as coisas fossem diferentes. Talvez não repetisses, vezes sem conta, “é só mais um dia. Um dia com as dores próprias de um dia repetível.” O que querias é que os dias não tivessem um rosto visível. Que fossem, irrepetíveis.
Já são três horas e dezasseis minutos do dia novo. Soa demasiado epistolar o anúncio da hora desse modo. Admites: sempre foste muito solene. A começar contigo. “Oxalá não fossem as fraturas do pretérito as faturas que levas a peito” – resmungaste, audivelmente, sabendo que o responso saíra de ti para voltar à procedência.
Estavas quase em casa, sem ter sido de propósito. Entraste no prédio e o porteiro acordou, estremunhado, de um sono imprevisto. Que incómodo! A tua chegada tardia assustou o porteiro. Passaste a mão pelo ombro do porteiro e disseste: “boa noite, senhor Adriano”. Desconfiaste que a noite do senhor Adriano, em princípio uma noite em branco, ia ser melhor do que a tua.
Mão Morta, “Oub’lá” (ao vivo), in https://www.youtube.com/watch?v=_G9rML3yFxs
Sabem a cor da transparência? Sabem quando foi a última vez que o pai natal escanhoou a barba? Sabem a que sabe a água da chuva? Sabem compor a equação que resolve o segredo da caixa de Pandora? Sabem como são concebidos os dragões? Sabem desenhar um gambozino?
Vamos a isto: vamos à caça de gambozinos. Levamos, como cicerones, gente muito importante que foi escolhida para nos representar. Chamam-se “políticos”. Vocês, queridas crianças, vão ser guiadas pelo tabuleiro onde se joga a política. Não estranhem que os vossos olhos sejam vendados: temos de confiar naqueles que foram escolhidos para nos representarem. Têm de ir às cegas, como se estivessem a jogar à cabra-cega: o que se espera, é que consigam descobrir gambozinos, só com o tato.
Bem-vindos à política no des-esplendor do que vocês, queridas crianças, serão figurantes (quando deixarem de ser crianças).
A certa altura, vão perceber que serão deixados sozinhos numa mortalha onde apenas conseguem ver escuridão. Não podem protestar: além de terem vendado os olhos, também vos vendaram a boca – e as mãos, para serem perfeitas marionetas que não conseguem importunar os figurões que vos deixaram sozinhos, entregues à vossa sorte. Alguns poderão conseguir desembaraçar-se das cordas lassas que prendem as mãos e, ato contínuo, soltam-se da venda que vos silencia a fala. Esses vão protestar por socorro, que a venda que anula a visão não a conseguem desatar. Possivelmente terão medo. Ninguém vos informou se os gambozinos são criaturas temíveis ou sociáveis, se mordem e podem causar dor, ou se se afeiçoam a quem os encontra.
O jogo dura muito tempo. Com o tempo, habituam-se à condição de invisuais. Continuam, por este tempo todo, a não conseguir tatear algo que se pareça com um gambozino. Mesmo que o conseguissem, não saberiam se era um gambozino: ninguém vos ensinou o que é um gambozino; não podem saber, ainda por cima mergulhados numa cegueira involuntária, se algum dia conseguirão chegar ao contacto com um gambozino.
Com o tempo a passar, começam a esquecer-se da razão do jogo. Começam a esquecer-se que estão a jogar um jogo. Habituam-se às trevas. O cenário para onde foram atirados, sempre escuro, passar a ser o vosso normal, como se se tratasse de uma contínua noite ártica no inverno. Já não sabem sequer que “gambozino” pertence ao vocabulário. Continuam a jogar à caça de gambozinos, só que não sabem que essa é a vossa função.
Com o tempo, pode acontecer, mas apenas aos que consigam resgatar um mínimo de lucidez, que intuam que são vocês, já não petizes, mas gente adulta e devidamente formada e informada por autorrecreação, que são os gambozinos. Sabê-lo-ão quando o calendário anuncia uma eleição. E entre as eleições, por serem vítimas de uma carnificina disfarçada de pomposa retórica, da autoria dos que julgavam ser os gambozinos.
Afinal, vocês é que são os gambozinos, presas fáceis nesta caçada. Uma vez constituídos gambozinos, não conseguem deixar de ser gambozinos. A menos que consigam mudar de barricada e entrar para a elite que parte à caça de gambozinos.