O que diz o castrense aos unicórnios? Impetra para que exemplar seja a sua conduta, pois os não exemplares são súbditos de condição proscrita, por flagrante delito dos códigos de (boa) conduta. Dirá: “vejam-me como seu diligente seguidor, o garboso cumpridor, ademais, zeloso escrutinador das baias dos outros, generosamente amparando-os para não treslerem suas condutas.” Não o disse, mas deixou nas entrelinhas: este é o papel que exerce, apaixonadamente e por desinteresse. Até correndo o risco de dissabores, pois que unicórnios há que se insurgem, e com maus modos, contra tão altruísta prestação de serviços. O castrense é o pináculo do paradigma que se exerce em sua total normalidade. Os unicórnios não passaram pelos códigos de conduta e desconhecem que o seu privativo dicionário contenha a palavra “normalidade”.Incomodam-se com os quadros meticulosamente adestrados onde só há lugar para a perfeição. A perfeição é um logro, a tortura dos que sonham com um lugar feito de gente apenas amestrada. Não se importam que sejam denunciados e logo de seguida apostrofados de “mau exemplo”. Eles correm por onde lhes apetece, sem o cabresto dos castrenses a cercear a perna que se quer longa. Se pudessem ser um animal, seriam os rocinantes selvagens que erram pelos montes, de quem se diz não terem dono. Nem que fiquem a dever à estética (assim considerada pelas convenções) e não sejam acolhidos como notáveis ao lagar onde só os ditos cujos têm tenência. Os unicórnios não se ajuramentam maus exemplos. Mas se a sentença provier dos castrenses que não recusam a rédea curta, sentem-se elogiados. Aos rigores semânticos preferiam que deles se disse serem “sem exemplo”. Quadrava melhor com a insubmissão sem quartel. Não queiram, os castrenses encavalitados na austera vergasta que fazem adejar sobre os demais, saber dos maus exemplos em que vegetam os sem exemplo.
30.10.20
Maus exemplos (short stories #274)
29.10.20
Crónica do desinteresse (de toute façon) (short stories #273)
Não dou alvíssaras – nem me proponho entregar às alvíssaras. Na meação dos propósitos, desobstruo a paisagem das paragonas onde se professa uma estultícia de que não quero ser peão nem pajem. Talvez seja tutor do meu olhar e, para bem das minhas intenções, só o deixe dirigir-se aos lugares onde sei não ter agressão gratuita por mote e por consequência. Deponho a minha coroa, prontamente recusada, nesse altar densamente povoado por estetas do desprazer, querubins da corruptela, epítomes da insídia, oximoros de si mesmos. Estou à margem deste caudal, dele sabendo ser um potentado do nada, a inanidade absoluta, a literalidade do vazio desembaraçada de alfândegas. Quero, ao império da frivolidade, doar uma narração de desinteresse. Não quero, em muitos aspetos, o património genético de um mundo assim desembaraçado; prefiro os embaraços onde se convolam as artérias de um sangue em ebulição, em vez de um sangue marasmo, fétido e algoz, acabado. Quero ser cronista deste desinteresse e dizer, nem que seja em laivo pretensioso, “de toute façon”, só para arrematar uma pueril erudição que dispensa iconoclastas. Não darei palco aos vetustos penhores dos costumes. Aos mastins que mordem à traição, só quando as presas viram costas, e dão logo à perna antes que a presa, iracunda, a eles se atire. Nem aos tentaculares, obnóxios padres do compadrio, os que não vingam por dote, mas por serem peritos nas portas giratórias onde dançam as poderosas influências. De tudo isto, com um cálice de generoso vinho empunhado, possuo o mais elevado grau de indiferença, e a ele brindo. Não me julguem pela apostasia, por ser insubmisso aos códigos de conduta, um pouco como um eremita exilado num refúgio mental. Não me considerem para o jogo das comiserações, nem para a fábula das compensações. Dispenso a generosa liberalidade. Não me julguem, e ponto final.
28.10.20
Tecnologia, o diamante (short stories #272)
Tirou a sorte ao azar. (Ou talvez tenha sido ao contrário: o azar foi tirado à sorte.) Uma espécie de roleta russa. A adrenalina compõe-se na estante do olhar, avançando por ondas intrépidas que se sobrepõem à moderação dos precavidos. Nunca foi precavido. Nunca quis saber do tecido de que podia ser feito o porvir, porque não dava importância ao porvir. Alguns consideravam-no demencial. O avesso do paradigma, se fossem contadas as prédicas paternalistas que constavam do manual de procedimentos dos mandantes. Não contassem com ele para a engenharia social. O fumo, por exemplo: só começou a fumar quando tomou conhecimento da guerra sem quartel que passara a ser movida aos fumadores. Dele ficou conhecida uma frase irrebatível: “prefiro lamber um cinzeiro que dar um beijo ao engenheiro Macário.” Ou das várias formas de álcool, ele que só bebera a primeira cerveja a uns tardios vinte e cinco anos. Alguns perguntavam o que foi feito da sua muito disciplinada adolescência. Ele não consentia que tivesse sido disciplinada. Não que fosse contar os seus pecadilhos, que esses apenas importavam às faldas onde vagueia, errante, a insubmissa consciência. Mas não fora um conto exemplar, a sua adolescência. É que nem sequer interessava responder ao quesito: uma vida pretérita não formata a atual. Essa era a sua ideia de tecnologia. Nunca perdia de vista o diamante que uma vez julgou achar não na savana africana, ou nos terrenos garimpados algures na América Latina. Não era um diamante – e passou vergonhas no avaliador encartado, quando este, com um misto de comiseração e desdém, anunciou ser um diamante de fancaria. Resignado, meteu os pés ao caminho. E, a caminho de casa, não parava de pensar como os mandantes nestes tempos de emergência também são falsários, meros regentes habilitados a ostentar o despotismo noutros tempos escondido. Para ser desta tecnologia, antes ser refém do atraso.
27.10.20
O livro sem capítulos
Band of Horses, “No One’s Gonna Love You”, in https://www.youtube.com/watch?v=cuZo7pLnL7c
Dentro da folhagem recuada, atomizava-se um certo pesar pelas paredes outrora não caiadas. Dizia-se que elas deixavam à mostra a nata dos arrependimentos, os contratempos sem pré-aviso, as resoluções que vieram a ser assombradas pela imprecisão, os lagares onde eram fermentadas lágrimas sem paradeiro. As páginas amontoavam-se. Eram dispersos, sem ordenação nem morada de inventariação. “A caminho de serem um livro”, murmurava, como se estivesse a combinar com as vozes insuspeitas o prazo para tornar aquelas páginas públicas. Aquelas vozes que, em surdina, tornavam o rosto arcano atrás das sombras imorredoiras.
Era um livro inteiro, sem capítulos. Sem parágrafos. Uma mancha compacta onde se encavalitavam as palavras densamente arborizadas. A prolixa condição habitava no constante declinar do estertor. Onde se apanhasse com um tempo livre, esboçava umas palavras para adicionar ao compêndio existente. Não interessava que as páginas sucessivas se ausentassem de lógica, que fossem um invisível espaçamento entre materiais. Não interessava que os assuntos se sucedessem sem fio condutor; não é assim que grande parte do tempo sucede com as vidas?
Não sabia o que fazer com todo aquele arrazoado. Havia quem protestasse pela escrita gongórica, mas não acusava o toque. A escrita verte-se no estilo que aprouver, um código genético, inato a cada pessoa. “É isto que eu escrevo. Não vou capitular ao apuramento da escrita acessível nem ao aprumar dos assuntos. Esta é a minha escrita.” Indisponível para concessões, apalavrara o sentido incomum dos pensamentos que encontravam um cais no amontoado de páginas. “Sim, eu sei: isto oferece pouca inteligibilidade. Rima comigo.”
Em sua defesa, a acalorada vertigem que trespassava as páginas que não deixava embolorecer. Recusava que as vissem como um confessionário autobiográfico. Para afastar as suspeitas, polvilhou o enredo com factos improváveis e reações inverosímeis. “Este que narra de fio a pavio não sou eu”. Não receava que adejasse a contradição, pois se insistia ser esta escrita um selo genético, desaprovava o laivo autobiográfico. “Não fui feito para autobiografias. A minha vida é um imprestável pântano. Não seria do interesse de ninguém.”
Tinha uma ambição: que o livro fosse aberto, uma obra em atualização contínua. Há poetas que assim transitaram pela efemeridade da sua obra. Queria que o livro, o livro sem capítulos, se tornasse num livro de capítulo único, perenemente aberto à cartografia incerta do tempo vindouro.
Não sabia se era de mais a ousadia.
26.10.20
Garantia vitalícia
E depois havia aquela bandeira, o espasmódico enamorar com a perenidade da nação. Os cultores alinhavam-se em sentido, insistindo nos rostos fechados, rugindo juras de fidelidade à nação. Apesar de tão masculinos, eram capazes de levar a epiderme ao arrepio e de verter umas não reprimíveis lágrimas quando as estrofes do hino beijavam o céu.
Eram capazes de sublimar a escrita quando teciam loas à nação. Não admitiam que se escarnecesse dos símbolos da nação. E se o escarnecimento tivesse a nação como sujeito, eram capazes de declarar guerra. Declarar guerra. E de morrer pela nação, que a sua vida só fazia sentido se fossem diligentes guardiões da incorruptível nação. Não se importunavam que a nação os tratasse como seus filhos anónimos. Muitas vezes, ou quase sempre, como filhos bastardos. Nem assim se importavam. (Houve quem a isto chamasse síndrome de Estocolmo.)
A bandeira era sacrossanta, o opulento estandarte que encerrava o sedimentado lastro histórico da nação. Não sabiam que as pessoas são feitas do mesmo sangue e da mesma carne e dos mesmos ossos, apesar das nações. Não sabiam que diferentes idiomas não são a caução das nações. E podia haver diferentes culturas, idiossincrasias tidas como sendo do âmbito nacional; se os cultores da nação não se escondessem do pano de fundo sob os seus apurados analíticos narizes, dariam conta que dentro da mesma nação convivem diferentes culturas, às vezes diferentes idiomas – e cada vez mais, pessoas de diferentes lastros culturais. Estes abencerragens recriaram um espaço que se julgava sepultado.
A miscigenação, contemporânea do cosmopolita abraço do mundo, não é de agora. Os mesmos heróis dos cultores da nação foram, outrora, os primeiros a arrotear a avenida cosmopolita quando se miscigenaram com os locais. Não é surpresa: os mastins da nação estão reféns de um indisfarçável défice de conhecimento da História. A vulgata nacionalista é um nanismo intelectual, uma excitação hormonal. Eles são os seus próprios canibais, incapazes de perceberem como a sua narração do mundo é arcaica, no máximo o desejo de um oráculo que exigiria um retrocesso abismal na organização das pessoas.
Os cultores da nação continuam a dedilhar a garantia vitalícia da nação, os pobres. Se ao menos soubessem como a História é pródiga em nações efémeras. Não há garantias vitalícias.
23.10.20
Ovos moles (short stories #271)
Uma chuva anciã arruma o dia. Já só a penumbra se anuncia, os rostos deixados ao abandono – como se, de repente, o deserto tivesse tomado conta da cidade. As sombras furtivas sobem às janelas onde se escondem, ténues, as luzes que patenteiam a cidadania em torpor. Ainda não é hora do deitar, mas já se prepara, e de véspera, o dia que se segue. Exercícios mentais, juras de não adiamentos, a mnemónica dos afazeres inadiáveis (que, contudo, hão de ser procrastinados, mais um dia), meia dúzia de páginas de um livro a chamar o sono, possivelmente o mágico comprimido que o instala se se mantiver timorato. E depois, o território dos sonhos. Um evento caudaloso, irrepresentável, um enredo cheio de alçapões, as falas cruzadas que sobressaltam a inteligibilidade do discurso, um caldo de mesquinhez e de bonomia, a inverosimilhança da ousadia. Um retrato que podia ser a fidedigna imagem da cidade que se hasteia no pulsar dos habitantes. Destes, ou de outros. Em surrealista vociferação de uma ideia sem precedentes: e se um dia os habitantes da cidade fossem todos substituídos por forasteiros? A cidade deixaria de ser o que é? Pergunta sem resposta. Um salto no tempo: a manhã é o prolongamento da noite: a claridade baça, arrematada por um nevoeiro persistente que se cola à alma. Não será por acaso que as pessoas andam contrariadas pelas ruas, como se tivessem sido tiradas de casa e o desprazer desenhado nos rostos fosse o voto de protesto. As convenções não toleram adiamentos. As leis preconizam faltas injustificadas para os insubmissos que façam sobressair a vontade sobre as convenções. Não há nada a fazer. Empenhados ao fluir do tempo e da cidade, andamos iludidos que somos suseranos da nossa vontade. O amanhã cuidará de agravar a fenda entre o palco em que somos e a nossa intuição.
22.10.20
Elogio rasgado
O elogio rasgado é um lugar traiçoeiro para se estar. O elogiado pode não saber que a palavra que complementa o elogio é verbo, não é adjetivo – e que, por a visão já não ser a de outrora, escapou-se-lhe a vírgula entre os dois termos. Um elogio assim rasgado é a negação de si mesmo; ou a confissão do que dantes teria sido episódio de elogio foi, entretanto, rasgado, deixando de o ser. O elogiado nunca saberá se o elogiador queria usar um verbo ou um adjetivo à frente do substantivo. Para discernir a vírgula em separação dos termos, é aconselhável a visita a um oftalmologista.
Ainda que seja adjetivo: o idioma tropeça nestas fórmulas ardilosas (há quem lhe chame “expressões idiomáticas”). Se o elogio é rasgado, é porque deixou de existir. Quando rasgamos uma folha de papel, ela passa à história como inexistência. Quando rasgamos a pele, ela fica com cicatrizes; um elogio rasgado é um elogio exposto às vicissitudes das cicatrizes? Ou então, pode ser sinónimo de algo que se abre e fica exposto à consideração do utente da coisa. O elogio é rasgado e fica patente aos sentidos do elogiado. Tal como no consumo da coisa que só é consumível depois de rasgado o invólucro que a cobre, o elogio rasgado fica ao critério do elogiado.
Tudo depende de como se entoa o elogio. A impostura poderá ser tanta que a voz delicodoce se arma como esconderijo do oposto do que está a ser dito. Um elogio rasgado pode ser um presente envenenado. Pois ele há elogios que são um despautério na pessoa do elogiado. O elogiador sabe-o. Ao rasgar o elogio, está a rasgar a alma do elogiado. Não há critério mais cínico para escarnecer de alguém.
Sempre que ouço alguém a proferir a expressão “elogio rasgado”, sobe à superfície a imagem do rasgar em câmara lenta, como quem expropria a indumentária do outro vagarosamente, para ser maior a humilhação. Milímetro a milímetro rasgadas as vestes, com um olhar de desdém que se entroniza na fala que desfaz o elogiado ao risível, sem que este dê conta que a intenção é o antónimo do que é dito.
Elogio rasgado, pois os que se saciam nas genuflexões consequentes ao elogio (rasgado) precisam tanto de autoestima que nem se apercebem como o rasgado elogio é uma elegia.
21.10.20
Free pass
De noite, ninguém vê. Ninguém se vê. Não se desça ao lugar-comum para evocar gatos e de como são pardos e de como o pardacento ajuda ao anonimato. Não é por acaso que os meliantes são noctívagos. Com o beneplácito das sombras, é maior o desembaraço. Mas somos seres que aproveitam a noite para acertar contas com o descanso. As cidades desertam. (A menos que sejam como aqueloutras que nunca dormem, nem de noite.)
Há um certo pudor que se alimenta da luz diurna. Ninguém se esconde no seu anonimato. É como se o dia soalheiro insistisse em retirar o anonimato às pessoas. Não que os nomes sejam ostentados à luz do dia, que, a menos que lhes seja perguntado (ou se forem “notáveis”, essa categoria imprescindível da mediocridade contemporânea), os nomes são património do anonimato. O sol tinge-se sobre os corpos que aparecem revelados na sua nitidez. E nítidas ficam as fronteiras entre cada corpo que não se entrega aos ismos sobranceiros que as modas entretecem.
A luz diurna é uma dádiva sobre os que desprezam a noite e a destinam ao lugar residual onde lobriga o sono. Gratuitamente despejada sobre os lugares e as pessoas que neles se encontram, um passe gratuito para que as pessoas se desembaracem das teias ainda embrionárias. Do que somos feitos se não de uma impressão digital avivada pela tela de cores e de luzes emprestada pela duração do dia? Não se arrisquem fados impróprios para consumo, que a noite é a púrpura baixela onde se orquestram os corpos indefesos. Não se terçam as armas, por essa altura, que os corpos estão na iminência do sono e dos sonhos alquebrados não são próceres.
Mais um trunfo a favor da claridade que campeia enquanto o dia não for hipotecado pelo crepúsculo. A dentição das ideias compõe-se no frémito que é o desejo apalavrado pela luz diurna. Dos outros, os dissidentes que se refugiam na penumbra, não se dirá mais se não ser o seu direito. Haja quem seja madrugador e da alvorada não perca pitada. Pois cada segundo de claridade é o totem fértil da inspiração.
De noite, somos fantasmas que se curvam à fatalidade do inconsciente. Também é gratuito, mas não é demiúrgico como a alvura pujante do dia.
20.10.20
Pitbull (short stories #270)
Desacerto o improvável sequestro da alma. Não sei de que fenda se emancipa o olhar, mas não aprecio que seja devorador, o olhar. Dizem que há pleitos por menos, mas nunca soube o que era uma lide com o soez orquestrar dos corpos. Para isso há os que usam pitbulls, alguém sussurrou acidentalmente. O dito foi impreciso. Os pitbulls não são dessa linhagem, a menos que os tutores os deseduquem para serem maltrapilhos salivando a violência que encontra úbere nos tutores. A roda da vida não se compraz com os heróis de boca que não dão uma braçada para selarem com feitos o que prometem com bravas palavras. Podem ostentar pitbulls desamestrados como garantia do espúrio ameaçar dos outros. Fossem os destemidos marialvas sem quartel, não precisavam de vir atrelados aos pitbulls. Ou melhor: por cada posta de violência ensinada aos pitbulls, deviam cumprir serviço cívico por eles considerado inapropriado (por o considerarem consentâneo com a feminilidade) – além de lhes serem retirados os cães e logo entregues para reeducação civil. Estes monarcas do desassossego vivem de violência gratuita. (Em melhor pensando, não se creia que exista violência sem ser gratuita.) Os pitbulls não merecem o grotesco protótipo humano que lhes cai em má sorte. Carregam um opróbrio que devia ser endossado a quem os industriou para afiarem o dente nos alvos que eles, por sua conta, não têm coragem para desafiar. Estes apóstatas fazem lembrar os valentões da escola que escolhiam a dedo as vítimas sabendo que eram macilentas, fracas e desprotegidas. São estes os bravos que se fazem pass(e)ar como tal: os que vão a pleito só quando sabem de véspera que o conseguem vencer. Aprenderam a ser covardes – essa é a sua melhor lição. Quando crescem, escondem a covardia nos maxilares poderosos dos cães de fila que trazem a tiracolo. São pobres de armas próprias.
19.10.20
Viagem de ida (short stories #269)
“Não ouves a tua voz? Não a ouves a sussurrar o pleito da prisão, só para saberes como não pode ser apenas quimérica a liberdade?” Avisas: não estimo por cálculos os próximos apeadeiros. Não tomo em mãos guarda-chuvas perentórios porque prefiro ser o santuário onde a chuva se depõe. Não faço da literatura ponto de honra, deixo-a pertencer às páginas onde os escritores se imortalizam. Tenho uma viagem. Uma, por fazer. Talvez mais, um punhado delas, ou umas dezenas. Ainda não perguntei à bússola pelo paradeiro dessas viagens. Dizem-me surdamente vozes desobedientes que não se tira o bilhete para uma viagem de ida e volta. Não sei o que me querem dizer, tão surdamente, essas vozes. “Essas vozes são o palimpsesto da tua voz. É dela que ecoam. Tens de dar conta disso.” As sílabas tartamudeiam o labirinto onde o pensamento se esgrime. Só ouço palavras ininteligíveis; as únicas que consigo reter são aquelas sobre a viagem que só pode ter ida. Configuro o enigma, esforço-me por varrer as impurezas que impedem a visibilidade das palavras. Não sei se temo pelo vazio que se enevoa no palco onde corre a fala surda. “Mas essa fala é a refração da tua própria fala. Só que não reconheces a tua voz.” Ah, se ao menos soubesse de uma modesta cortesia, se o protocolo medrasse dentro de mim, podia educadamente perguntar às surdas vozes para serem étimo claro. Desconfio que sou como o elefante no meio da sala, as porcelanas todas estilhaçadas por ser tão desastrado. Sempre disse que não dava para a diplomacia. São as convenções que se afivelam estruturalmente, aderindo ao peso do tempo. “Teimas em não ouvir a tua voz? É ela que conta os segredos que não sabes.” E se os apeadeiros que estão por vir forem fortalezas inacessíveis, o que faço?
16.10.20
Apontamento (short stories #268)
Abotoado até ao pescoço. As cortinas servem para embaciar o que queremos escondido. Os olhos forasteiros querem-se forasteiros, a casa um castelo que é refúgio. Às vezes, é preciso ser antídoto da hospitalidade. Não se é contra uma cosmovisão aberta, cosmopolita, do trato com o outro, diferente. Insurgimo-nos contra as intrusões que desarmadilham a cumplicidade íntima que cada um tem consigo. Da modernidade chegam notícias avassaladoras: a exposição pública tem a chancela dos meios digitais que, de uma penada só, tanto democratizam o acesso ao espaço público como expõem as pessoas. Desabotoam-se de casacos. Uns, camada atrás de camada, até lhes sobrar a nudez; outros, alijando apenas certas camadas, mantendo um módico de identidade à margem do olhar forasteiro. Em cada palavra, em cada vírgula, em cada parágrafo possivelmente tresmalhado, serve-se a nudez sem corpos aos demais. Fica-se como um livro aberto, onde os demais podem tresler as palavras, ou delas escarnecer – ou glosá-las, tornando-as seu plágio. Pode ser uma intempérie que se abate sobre a ufania de uns, a tempestade cerebral de outros, ou apenas a necessidade de outros silenciarem o silêncio sepulcral através da récita no imenso palco virtual. Para cada um, sobram umas migalhas, um breviário de apontamentos que ficam esquecidos no lugar das notas de rodapé. Afigura-se uma empreitada demencial: o isolamento do mundo que medra na alteridade de meios, uma espécie de contumácia. Como se fossem monges hodiernos, sem peias da metafísica. Coalescem as furtivas palavras que desaconselham o ensimesmar: “hoje ninguém pode estar descontactado. É criminoso estar nessa condição”. Não sabem, os novos profetas, que um punhado de almas não se transfigura no acessório palco onde desfilam os fingimentos que se autoimolam numa pira de ilusões. Acabam todos incensados na fogueira da intolerância. São todos importantes, fundidos na sua inigualável, mas não apercebida, desimportância.
15.10.20
Não se contam segredos em público, é feio
Éramos crianças: ensinavam-nos: não se contam segredos à frente das outras pessoas; é feio. Mas isso era quando éramos crianças. Nessa altura, as bitolas da educação seriam diferentes das de agora.
(Muito embora as pessoas muito importantes que aparecem na fotografia não sejam muito mais novas, podendo-se pressupor que, quando lhes tocou a vez de serem crianças, também terão sido submetidas aos mesmos padrões educativos. Ou pode acontecer, em palco alternativo, que os progenitores destas personagens fossem rebeldes. Para eles, não contavam os ancestrais modos da educação.)
Nessa altura, quando éramos crianças e passávamos pelo crivo da educação que também nos ensinava a socializar, não havia peritos em ler os lábios de quem fala. Não corríamos o risco de alguém decifrar a fala através de um meticuloso esquadrinhar dos lábios que, em sua movimentação, devolvem palavras ao exterior de nós. Não corríamos o risco desta moderna modalidade de voyeurismo. Agora, com os peritos diligentemente à cata da fala das personagens importantes, só para se saber se caíram em falso através da fala, as ditas personagens importantes previnem-se. A mão esconde os lábios e esconde a fala. O encargo dos peritos da decifração dos lábios esbarra na mão impertinente que tapa a boca.
Como os tempos são propícios à mudança, talvez o código de conduta tenha sido modificado. Prevenindo a ingerência dos decifradores das bocas que falam, um outro imperativo se sobrepôs, transfigurando o código de conduta: já não é má educação segredar em público, com o gesto ostensivo da mão a esconder as palavras entoadas. Como se tivesse sido feita uma adenda ao código de conduta, em virtude das necessidades apalavradas nas circunstâncias que entraram em mudança. A culpa será de atribuir aos novos voyeurs que vasculham, com precisão cirúrgica, cada movimento da boca para extraírem o sentido da fala.
Já não se dirá: não contes segredos à frente das pessoas, que é feio. Desta vez, o endosso das entorses ao código da boa educação (no que quer que isso seja) faz-se aos peritos da decifração da fala. A eles é que se dirá: é feio espiolhar cada movimento da boca e roubar a fala que devia ter ficado no íntimo de quem fala.
E o que de tão importante segredava o ministro ao secretário de Estado?
14.10.20
Manicómio (short stories #267)
Era um sarrabulho feito com o bafo matinal dos atletas do inadvertido. Convocado o primeiro-ministro, mandou dizer que tinha a agenda preenchida (comme d’habitude). A nomenclatura agigantou-se em defesa do timoneiro: ele é lá possível duvidar da palavra de sua excelência? Um endemoninhado protestou em jeito de interrogação retórica: “quem comprava um automóvel usado a esta pessoa?” (Se lhe perguntassem – o que não foi o caso, pois ninguém lhe prestou atenção – diria não se tratar do primeiro-ministro, sem esclarecer a quem se referia, deixando no ar uma perene dúvida que acabaria por consumir os transeuntes). Treslendo o olhar, o edil favorito das coquetes antecipava os putativos disfarces, acusando os adversários antes do tempo. “É preciso estar três passos à frente desta gente”, acrescentou, enquanto, esbaforido, serpenteava as mãos freneticamente, dir-se-ia que estava a afugentar um enxame de moscas que o azucrinavam, ou algo de semelhante. O porteiro do ministério esqueceu-se da genuflexão e o ministro desviou o olhar do telemóvel (onde consultava uma página proibida pela rede do ministério) para repreender o funcionário. “Se fosse o primeiro-ministro, o senhor não se levantava?”, inquiriu, arrogantemente. O primeiro-ministro tomou conhecimento do episódio e não perdoou a ciumeira do por-muitos-considerado-seu-delfim. A demissão esperava-o ao pequeno-almoço do dia seguinte. A amante, que se esgueirara pela garagem para escapar ao voyeurismo dos fotógrafos bisbilhoteiros, procurou aplacar a fúria do já ex-ministro. Iracundo, o homem afastou-a e, com maus modos, sentenciou: “vai lá fazer um jeitinho ao nosso primeiro, que é tão querido”. Um mal nunca vem só: num só dia perdeu a sinecura e a lúbrica amante, que não mais o quis ver. O presidente fez de conta que não sabe nada (pese embora a omnisciência dos serviços secretos, diligentemente ao seu serviço). Os analistas desconfiaram que um golpe palaciano estava em preparação. Não sabiam se seria da autoria do ex-delfim, da sua outrora amante (afinal, a soldo da espionagem espanhola), ou do presidente.
13.10.20
O estuque, disfarçado de betão armado (short stories #266)
A corda lassa deixa aberta a escotilha entre o naufrágio e o apogeu. As pagas sobem pelas paredes húmidas do poço, não se intimidam com o musgo que o almofada. E nem os fantasmas noturnos, que açambarcam sonhos e os transfiguram em pesadelos, importunam o caudal do sono. Há um convencimento pleno de que o betão armado serve para aplacar as possíveis dores que os contratempos situem. Os fundos esteios conferem a fortificação. Palavras há que foram banidas do vocabulário: medo, sobressalto, cerco, solidão, silêncio, abismo, tergiversação. O betão armado povoou a cidadela. Não é à prova de bala, que armadura nenhuma o é. É uma garantia que reforça o desmedo e o situa perante o estuário do mundo na condição de suserano. Ufana-se. Bate no peito com o punho cerrado, visivelmente com a força toda, e o peito não dá de si. Ele não deixa à mostra o mínimo esgar de dor. Não consegue reprimir a altivez. Está convencido que é invejado pelos outros, os de fraca têmpera que habilitam o espírito à predação dos perenes mastins que se alimentam da fragilidade dos outros. Mas o punho cerrado que se esmaga contra o peito é um ardiloso exercício de força. Ele acaba por pousar suavemente no peito heroico. Percebe-se. E com esta consciência, soergue-se a desconfiança: porventura o herói oficial da cidadela é um embuste, a negação de si mesmo, um disfarce para enganar os temíveis mastins que se alimentam da fragilidade dos outros. O que tem a aparência de betão armado não passa de estuque, diligentemente moldado para parecer betão armado. É por isso que ele desenha um perímetro de segurança sobre os demais. Não quer que eles se cheguem perto, não vão perceber que a fortaleza se estilhaça na mais pura, e humana, fragilidade.
12.10.20
A nuvem de Juno
Toma-se partido. Um lado. Aos outros perde-se o rastilho. As escolhas são contingentes. Poder-se-ia lamentar que não são perfeitas. Mas essa perfeição, a existir, seria a automática negação da perfeição reivindicada. Ganha voz o suave gotejar da chuva que desfaz as ilusões. Impossível, a perfeição; sobra a resignação como pano de fundo.
No fundo, sabemos que os corredores por onde navega o juízo açambarcam a lucidez. Como se o juízo fosse errante e, sem paradeiro, se emaranhasse na distração das paredes dos corredores que o apequenam. Poder-se-ia mobilizar as vontades para a estultícia metódica que toma o acessório por essencial. Mas já sabemos: andamos a léguas da perfeição. Não se espere de nós intenções sem mácula, manifestações coroadas por uma pureza magnífica, o leve adocicar das palavras sem elas se mentirem a si mesmas. Transgredimos. Nisso, somos humanos.
Ou, então, seríamos como convidados para um lauto banquete e não conhecíamos os demais que amesendavam. Cuidaríamos da diligência social: seria abundante a conversa de circunstância, as perguntas que misturam a inata curiosidade com códigos de conduta, a exibição de vontades rivais, esta a ponte que agiliza a mitomania dos circunstantes. Daríamos conta do imenso teatro onde se congemina o trato. Dir-se-ia: é mais fácil mentir aos desconhecidos, que o deixaram de ser na alíquota do banquete. Os mitómanos não chegam a perceber que são as primeiras presas da ilusão que contaminam a si próprios.
No banquete, seriam só gravatas e vestidos de lantejoulas (como se fosse a imperativa indumentária). Ai de quem dissidisse e se apresentasse como um maltrapilho – e para tanto seria capaz ostentar, em dose provocatória, uma qualquer indumentária que não quadrasse com a do código determinado. Muito depressa se toma uma discriminação. Os códigos de conduta têm esta serventia. Identificam os que pertencem à casta, como se tivessem dificuldade em se inventariarem uns aos outros. Do lado de fora, os que não têm gabarito para pertencer ao escol. As fronteiras cerzidas em fazendas nobres e alqueires de ufania servem para estilhaçar os pertencentes em várias camadas. E, amiúde, cristalizam pertenças quiméricas que se cimentam na frivolidade de uma vestiaria.
O espartilho dos logros é uma fantasia, está à distância de quem toma partido. Às vezes, Juno é uma inanidade escondida na opulência de uma catadura exterior. Sem saberem, os pretendentes ao lugar de Juno são acrobatas sem circo. Se ao menos soubessem as cores das nuvens...
9.10.20
Bagatela (de onde vem o amanhã?) (short stories #265)
Não apetece o tirocínio: a espera faz-se na espera, por dentro de um labirinto que congraça as suas vítimas. Um lúdico esgar confronta a matéria do tempo. As vivas almas não dão de si. Mantêm-se em hibernação. O que se passa à sua volta é como se não passasse à sua volta. Regressam os fantasmas. Falam de conceitos. De vinganças. Que não se servem na combustão do sangue em ebulição; esperam para, em carne fria, desembestarem a artilharia. Alguém protesta: “estes relógios estão avariados.” Deixaram de ser serventuários da pior das tiranias. O muco da fala extática agarra-se ao parapeito das palavras tiradas da sua ordem. É preciso um novo entendimento para entender de onde vem o amanhã. Os mais ousados, os que nunca temem empreitadas (por pesadas que sejam), estariam em condições de assegurar que não se intimidam com a demanda. Perguntem-lhes, eles sabem de onde vem o amanhã: “a sua fonte é a véspera que é a sua caução.” É provável que a resposta não seja convincente. Entretanto, os tutores das certezas sem tergiversação saíram de palco. Fugiram. (Diriam sempre que não.) Fugiram do escrutínio que se posterga quando for a altura do acerto de contas. Se a sua profecia não se confirmar, ninguém pode pedir prestação de contas. Jã não serão postos em embaraço por terem negligentemente acrescentado, ao anteriormente exposto, “é bagatela!” Ruminando na sua irrelevância, os promitentes do nada abraçam as frívolas coisas que os mantêm. Mal de quem os quis ouvir. Sempre dirão, em sua defesa, oxalá tivessem ouvido o bramido dos fantasmas, que não aconselhava o aconselhamento junto dos senhores do oráculo. “De onde vem o amanhã?”, perguntavas, quase ininterruptamente. Não quiseste saber a resposta no que ao hoje diz respeito. Preferiste esperar por amanhã.
8.10.20
Manta de retalhos (short stories #264)
Junto às mãos nuas as posses remanescentes, a morada da vergonha. Ouvia rumores sobre o pudor, como os preconceitos se abatiam sobre o dorso inocente das pessoas; como, cruel, adejava um raio circundante que tatuava o selo da desonra. As vozes puídas amontoavam-se num coro disforme. Queriam a punição, exemplar. Não se compungiam com os lamentos da praxe – diz-se que, no magma do arrependimento, as proclamações de comiseração sobem à boca de cena, como se fosse preciso uma escusa por causa do (pelos vistos) topete de se ser quem é. Já poucas coisas faziam sentido, mergulhadas num campo infecundo onde as cores ocre se misturavam com os despojos do que fora, dantes, o intenso lobrigar. Os cadáveres eram o mosto irrelevante da paisagem, caldeados com o leve arrotear desordenado dos campos, como se fosse possível haver vivalma naquele lugar ermo. Ficara com a impressão de uma manta de retalhos, tivesse sido dada a possibilidade de me elevar em posição sobranceira sobre a paisagem. Seria como um mandamento exemplar da policromia de uma vida inteira, insubmissa contra o caudal parado onde medra a letargia. Não temi o opróbrio. Não temi o juízo de valores, aparentemente virado contra mim. Não temi o julgamento de personalidade por quem considero como não par. Esses pesarosos mastins dos costumes alheios não se perfumam a não ser com o odor fétido em que foram paridos. A abjuração às suas mãos é uma dádiva. Não é cadastro o que sobra; é uma medalha à lapela, uma comenda insistida pela privativa ordem de inescrupulosos figurões – uma primavera esplendorosa. Possam ser estes os meus confins, mas são da minha lavra. Deles não porfiem hesternos juízos que patenteiam adversos verbos. Não frequento essas latitudes. Prefiro as que são de minhas consumições. As que cabem nos deslimites do extravagante pensamento. Do pensamento da minha lavra.
7.10.20
Tratado
Outra voz. Vacila. Encontra-se no meio do nevoeiro arbóreo, disputando o orvalho com as folhas. Está sedento. Não sabe de onde emergiu esta fecunda iridescência que se abate sobre o seu corpo, resgatando o que considerava ser um anátema de si mesmo. Tem a impressão, fugaz, que fugiu. Fugiu o que pôde. Fugiu até encontrar um paradeiro. Sem pôr à prova a madurez, ainda intacta.
- É bom que preserve a madurez. Um dia destes, a decadência toma inabaláveis esteios e já não sei se não esperar.
Em vez de capitulação, iniciam-se as negociações. Desconhece a identidade do negociador. Ou o seu paradeiro. Inventaria as cláusulas que quer vertidas em letra de forma. Delimita as partes inconcessionáveis. Revê o método. Revê as aparas do desmedo que deixou, furtivas, nas mãos que eram suas perseguidoras – as mãos afinal suas, holograma imaginado, ou disputa feérica contra um eu escondido que, insubmisso, disputa os despojos da lucidez.
- Não consigo esperar que a noite tenha finitude. Arrasto-me para aqui, emaranhado num caleidoscópio de matéria inerte, e já não lembro como é ver o céu azulado. Não desespero. Apenas espero que a maré esteja de feição.
Na hora combinada, o negociador não compareceu. Não era difícil a empreitada: o lugar ermo estava deserto, se aparecesse alguém só podia ser o negociador. Mais ninguém teria a ousadia de aparecer num lugar tão ermo, tão aparentemente deslocado da estética. (Para não dizer “feio”.) Esperou. Não estava em posição de desprezar a negociação. Era no seu interesse. Mais do que no interesse do, por ora, enigmático negociador. Não sabia o seu nome e menos ainda os traços físicos que o distinguiam. Foi às cegas.
- Não sei se fui vítima de um logro. A negociação ainda não subiu à cena. Pode nem haver negociação, se o negociador deixar o lugar deserto. Serei vítima? A ausência de negociação não é o produto acabado de um logro.
Ensaiava uma justificação autoconvincente. Ele, tão preparado para selar um tratado quintessencial, esperava que as outras partes se dignassem com a sua presença. Provavelmente o tratado estava condenado a não passar de intenção. Também conta. As intenções não podem ficar dissimuladas no vago fumo da memória. Antes que fosse atraiçoado pela espuma do tempo, verteu os termos do tratado em papel edificante. Que não fosse por outros propósitos, o tratado ficaria a adejar para memória futura. Foi quando tomou consciência de que ele era o negociador que esperava.
- Não deixarei deserto o lugar ermo que estava fadado para tão solene tratado. Cuidarei da sua hegemonia. Sem concessões. Serei o curador deste tratado. Mudá-lo-ei consoante o sabre do tempo, a perfídia que o invadir, ou a solenidade que convocar a gentileza de palavras poetisas. Não precisarei de selar agradecimentos. Todos temos um tempo testemunha do desprendimento. Este é o tratado que deixo em legado.
6.10.20
Salto em cumprimento
Salto em cumprimento: não é erróneo o ajuntamento de palavras: um verbo (e não substantivo) e o sinónimo de uma saudação – não é a evocação de uma modalidade olímpica.
Saltamos o cumprimento, dever geral de convivência forçado pelas costuras das excecionais circunstâncias. É como se o afeto – a sua física comprovação – tivesse sido banido. Ou como se as simples normas de conduta que regem a convivência tivessem sido obliteradas, atiradas para o marmóreo lugar do oblívio.
Há sucedâneos: emprestamos o cotovelo, mas o ritual entronizado continua a ser cultivado na estranheza do gesto. Parecemos atores entregues a uma encenação risível enquanto atiramos o cotovelo na direção de outro cotovelo, naquele contorcer matraqueado que assinala o absurdo, enquanto o absurdo se convoca como substituo de um hábito. No dorso dos sucedâneos, a insistência em manter uma sinalética que perpetue a saudação. A convivência insiste em amadurecer os cumprimentos.
O corpo do outro tornou-se a fonte de propagação da peste. Tornou-se um lugar evitável. Britanizámo-nos – os britânicos sempre foram austeros no contacto corporal como eixo da saudação social. Praticamos o salto ao cumprimento e não somos atletas olímpicos. Não sabemos por quanto tempo; não sabemos quanto será o tempo ocupado pela peste. E também está fora da cogitação adivinhar como será a feição dos novos tempos depois de passado o abismo da peste, se os velhos hábitos serão resgatados – se o tempo que passou foi tanto ao ponto de embaciar a memória, ou se as pessoas interiorizaram o novo código de conduta higiénico, mais restritivo, e prescindem da saudação que é sinónima do contacto dos corpos.
Dir-se-á: salto o cumprimento, porque o ónus da peste derramou a adstringência dos afetos materializados em contacto dos corpos. Porventura o devir seja limítrofe a um redesenho dos usos. E nós, intérpretes desse redesenho, convencidos que o afeto não se alimenta apenas do apelo da pele do outro.
Por então, já teremos aprendido a saltar o cumprimento.
5.10.20
Apátrida
I
Com base no desconhecimento, a loucura enreda-se nos poros e suamos no bojo do surrealismo. Mantida a luz apagada, lemos a transparência no avesso do pensamento.
II
Se medram as saudades do pretérito, o relógio ficou refém dessa medida do tempo. Não temos de avançar pelas avenidas puídas. Não temos: se dessas avenidas sobra um resfolegar sem ânimo, não convocamos a identidade. Ela ficou hipotecada na baía do esquecimento.
III
Diria a lua que transgredimos na desaceitação do vulgar. Porventura, a lua terá uma lucidez ausente do terrestre. Povoamos as janelas com as lágrimas sem paradeiro. As mesmas lágrimas que se tivessem vencimento seriam dadas a quem não as merece.
IV
Não se manda ninguém para o pelourinho. O arcano verbo não se arregimenta de véspera. Para condenações estultas, as vésperas estão banidas dos decretos.
V
Não se manda ninguém para o pelourinho (é bom que seja repetido). Nem os (soi-disant) traidores. Não pode haver traição que se justaponha aos socalcos da consciência. Os julgamentos que assim sejam feitos viram a sua legitimidade caducada. Agora, a liberdade nasce dócil.
VI
Possuímos o amanhã. Ninguém duvide. Mesmo com as sucessivas camadas de incerteza do amanhã, somos nós que o possuímos. No que nos diz respeito, o amanhã não existe sem nós.
VII
Arrumamos a beleza no arquivo da estética. Não é ornamento secundário, a estética. Os olhos não são atraiçoados pelo instinto. Seríamos capatazes da infâmia se o património das artes decaísse num lúgubre lugar sob o beneplácito da nossa omissão.
VIII
A temporária condição não impede a constância. Aquela que for do apreço de quem assim a congemina. Não peçam genuflexões a bandeiras. Dessas castrações não somos cultores. Essa é uma constante.
IX
Os temerários navios aproveitam-se das correntes de feição e amputam a medida do tempo. Não são paradigma que mereça ser seguido. Queremos que o tempo flua à sua vontade. Não somos seu timoneiro. Somos seu passageiro. No deleite da paisagem atravessada.
X
Ardiam as árvores maceradas no fogo inventado pelos beócios. Não podíamos ser bombeiros. O fogo cuidou de devolver o despojamento da paisagem. Os recomeços devem à heurística o que os ocasos vindicam subtrair. Quase todos os ocasos são o fermento válido de um recomeço. Nem que tardio seja.
XI
Os poros exsudam a emancipação do pensamento. Não há açaimes que o embotem.
2.10.20
A encenação dos histriónicos (short stories #263)
“Eu finjo, tu finges, ele finge; nós fingimos, vós fingis, eles fingem”. Como se fosse uma eucaristia dos peticionários do presente, inamovíveis no seu armário de causas imbeliscáveis. E, todavia, os arautos de tudo isto não passavam de uma encenação de si mesmos. Reconheciam-no. Não se atemorizavam: que se chegasse à frente o primeiro cidadão que jurasse transitar nos antípodas do princípio geral da encenação, para ser acusado de mentir em dobro. A encenação estava banalizada, não tinham nada que recear. Que mal se pode abater sobre os que estimam a frontalidade desassombrada? Por isso, conjugavam o verbo “fingir” como oração imperativa de cada vez que se encontravam para atualizar a conversa. Não censuravam os que conseguiam adestrar encenações mais exímias; invejavam a criatividade, pois de tanto fingirem tornava-se difícil montar um cenário convincente. De tanto fingirem, todos: e de tanto fingirem, a meio do cenário já nem sabiam se estavam apenas a fingir ou se fingiam que fingiam. Discutiam as possibilidades: “menos com menos dá mais. Lembro-me dos bancos da escola. Porventura o fingimento do fingimento é a negação da mentira, o restabelecer da verdade”, especulou um dos confrades. Na voz vulgar, fingir um fingimento era fingir ao quadrado. Eles, peritos no assunto (fingimento), hesitavam na conclusão. Sem embaraço em admitir o formulário do fingimento, restolhavam o chão à procura de pistas que fornecessem a chave do enigma. Não queriam que fingir o fingimento tivesse a aritmética expressão do binómio de negativos que se converte num positivo – seria a negação do fingimento. Queriam que fosse como no adágio popular, pois a arte da encenação não está ao acesso de qualquer um. Desconfiados das suas possibilidades, temiam a demissão como arautos da encenação. Já não sabiam fazer o contrário. O fingimento era o seu ecossistema.
1.10.20
Último reduto (short stories #262)
Não se considerem os lugares ermos; por inóspitos serem, ou por inóspitos deles se fazer a ideia, não se considerem. O repasto é consensual quando se acolhe na verossimilhança de um lugar. É um pouco como os hunos que saem da terriola em turismo e a primeira demanda no lugar forasteiro é encontrar um bar que faça lembrar a terriola. A lógica do menor esforço não aconselha grandes cometimentos. Por cima dos imperativos, a retórica dos que rasgam do aceitável os modos de viagem que agridem o ecossistema. Talvez lhes pareça melhor serem iconoclastas do sedentarismo. Já não interessa sermos prodigamente cosmopolitas. As avenças hodiernas cuidaram de mudar os alinhavos do aceitável. Quem quiser procurar o seu último reduto, não vá longe: o reduto pode ser longínquo, inacessível, e estar na contingência de um lugar vizinho. Não são as distâncias físicas que importam. É o recolhimento interior. Há quem assegure que consegue ser asceta no meio do bulício de uma cidade em hora de ponta. O desligamento apura-se na participação do espírito. Congeminam-se as frases indisputáveis como argumento que protesta o último reduto. Em cachos, a solidão apalavra-se no fuso do tempo, sem esquadria. Possam ser tolerantes as marés que vierem de passagem. Sob vigilância dos estorninhos que usam a copa das magnólias ainda despidas de flor, aceita-se a água madrigal que se oferece sem remetente. Olhando para trás, já não se vêm os despojos. Já não são lembrados, os despojos. O canto lúgubre dos chacais esconde-os da vista ávida. Desamarram-se as braçadas que se atiram ao rio que avança, prolixo, para a senescência. As braçadas derrotam a corrente tresmalhada do rio. Sob a escolta de um dia soalheiro, o corpo enregelado retira-se do rio e descobre o seu último reduto, um lugar ermo, de tão perto, que ninguém desenhou nos mapas.