23.4.25

A pendência das pendências (deixar para depois o que se pôde fazer ontem)

The Dead Weather, “I Cut Like a Buffalo”, in https://www.youtube.com/watch?v=RYDhw8_lAn0

Uma pilha de papeis que vai ganhando pó a um canto da secretária, os papeis por dentro candidatos ao processo natural de amarelecimento se continuarem pendentes. 

Os livros empilhados à espera de tempo para serem abertos e as suas letras consumidas pelos olhos que não os perdem de vista. 

As palavras que podiam ter sido ditas e ficaram encravadas na apatia. 

A cornucópia de mudanças que se projetam ao ser aberta a caixa de Pandora das insatisfações que gravitam num determinado momento. 

Uma dieta que custa mais do que a fome que a deixa em marasmo. 

Um hábito, interiormente reconhecido como mau, que permanece sem antídoto. 

Uma indulgência que continua intencionalmente anestesiada. 

A imensa roleta russa em que vagueia a vida, à espera do inesperado, fiel à contingência como bússola por onde se rege o comportamento, indiferente a qualquer ordem interna, incapaz de deixar a vontade levitar e tratar do seu caminho.

O amontoado dos dias que segue um caminho contra as pendências que se inscrevem no rol dos adiamentos.

Todas estas pendências, sistematicamente enlaçadas umas nas outras, mas sem fio condutor entre elas, a não ser o reconhecimento de que se anda atrás do tempo e a sua conjura se mobiliza contra a extinção das pendências. Elas, que podem ser extintas por prescrição, por desatenção ou por consumação, adejam sobre o horizonte em que se projeta o olhar que não consegue ser diáfano. Pois todos os dias há um enxerto de névoa que acrescenta algum embaciar ao tabuleiro por que se regem as vidas e que admite outras pendências, novas ou resgatadas de um pretérito qualquer, a somar às existentes. 

As pendências podem ser extintas por prescrição, desatenção ou consumação. De acordo com a ordem das estatísticas, as últimas rareiam. As segundas são uma falsa condição, pois a desatenção não consegue fugir à intencionalidade. As primeiras merecem o benefício da dúvida, se forem ficando para trás na ordem em que se definem as prioridades. 

Parece que já não há agenda disponível para inventariar as pendências, o que se torna numa pendência quintessencial (ou numa meta-pendência). Ou, talvez, as pendências sejam um artifício, um garrote intencional que aviva a memória de que somos reféns do que deixamos para trás sem acabamento. 

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