Savanna, “Get It Right”, in
https://www.youtube.com/watch?v=jG97ktPsBZI
Podia ser que ela estivesse
certa. O arrependimento é a marca registada da frivolidade. A resposta
contundente avivou as interiores luzes vermelhas, o alarme estrepitoso. Por
mais que a amiga repetisse que ele era instruído, e o fizesse quase em pose
subserviente (e como isso o incomodava, por não quadrar com a amizade de longa
data), ele tinha as suas dúvidas. Não o dizia a ninguém, por falta de coragem.
Era isso mesmo: ele eram tantos os episódios em que deixara falar mais alto a
hipocrisia. Às vezes, temia que o sono fosse tomado de assalto por causa da
repetitiva hipocrisia, uma avenida larga emoldurada no seu registo.
No vocabulário dos egrégios, a
hipocrisia é detestável. Sinal de fraqueza. A tibieza dos fracos, autores das
piores aleivosias em nome da ausente coragem. Costuma-se dizer que os que não têm
coluna vertebral decaem na hipocrisia. Ele tinha as suas dúvidas. Concedia:
talvez as dúvidas fossem auto motivadas: ele era o primeiro a reconhecer, em interiores
exercícios de calibragem, que muitas vezes dera o flanco a decisões que não
eram as aconselhadas pelos cânones da coragem. Ato contínuo, arcou com o ónus
da hipocrisia. Algumas vezes, só ele soube de como fora hipócrita. Outras vezes,
a hipocrisia ficou à vista de toda a gente. Estes eram os casos mais dilacerantes.
Não era confortável suportar o venal propósito da hipocrisia aos olhos dos
outros – mesmo que soubesse, ou pelo menos desconfiasse, que os outros não
podiam exibir pergaminhos à prova de hipocrisia.
Em sua defesa, construía uma
elaborada teia argumentativa. (Era quando dava conta das acertadas palavras da
amiga, ao colocá-lo entre o escol dos instruídos...) Haveria sempre um jogo de
circunstâncias a favor da indeclinável decisão que arrematava a hipocrisia. Ele
não era como um colega de trabalho, lunático, provocador nato, senhor de uma
bravura inaudita, quase fazendo de propósito para escolher as palavras mais
desastradas (na visão do discurso que se exige, cada vez mais estéril e impassível,
não se colocando no rodo das suscetibilidades feridas). Teve muitos dissabores,
o outro. Era por isso que ele andava nos contrafortes do desleixo. Para ele,
nada tinha importância, mesmo o que pudesse ser agravo das suas dores.
Aprendeu a ser a antítese deste
homem. E se houvesse dúvidas sobre o que fazer, num certo momento mais delicado,
os contratempos aflitivos do colega eram boa mnemónica – sobre o que não fazer.
O outro tinha um enorme orgulho de si mesmo. Ele considerava coisa fátua. O orgulho
não dá de comer a ninguém. Os manuais da diplomacia são muito úteis. Há quem os
acuse de ensinarem hipocrisia em estado puro. Na dúvida, não hesitava: que
fossem levados os passos pelo caminho da hipocrisia, desde que ficasse claro
que do seu contrário podiam sobejar sobressaltos custosos.
A certa altura, nesta hermenêutica
interior que demandava a legitimidade da hipocrisia, lembrou-se da polémica em
que mergulhou o colega quando tentou flirtar com a consorte do chefe do
departamento. Ele jurou a pés juntos que a senhora deu o flanco e ele se
limitou a seguir as pistas lânguidas que ela deixava à sua passagem. Ninguém
ficou convencido, porque ele era irremediavelmente provocador e lhe era
conhecida a tendência para avaliar mal as situações com que se deparava. A
senhora reportou o caso ao chefe do departamento, seu cônjuge, que fez um pé-de-vento
tempestuoso e quis sanear o colega desleal. Não logrou os intentos. As semanas
seguintes foram de paródia sem fim. O homem, em vez de se refugiar num pedido
de desculpa, ainda veio alegar que a senhora ter-lhe-á dito que o chefe do
departamento era um desastre nos carnais deveres conjugais (com pormenores de
permeio que ficaram nos anais do risível). Safou-se desta por causa dos seus
intelectuais pergaminhos. E porque o superior do chefe do departamento o tinha
em boa conta, ao contrário da ideia que tinha do chefe do departamento.
Ao evocar este garrido episódio,
aproveitou para, em sua defesa, ensaiar a redefinição do conceito nas costas de
um eufemismo: não seria hipocrisia, era pragmatismo. O beneplácito das palavras
consegue o impossível. Só não se sabe o que fica colado no avesso das palavras
assim reinventadas.
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