14.3.18

No caudal da hipocrisia


Savanna, “Get It Right”, in https://www.youtube.com/watch?v=jG97ktPsBZI    
Podia ser que ela estivesse certa. O arrependimento é a marca registada da frivolidade. A resposta contundente avivou as interiores luzes vermelhas, o alarme estrepitoso. Por mais que a amiga repetisse que ele era instruído, e o fizesse quase em pose subserviente (e como isso o incomodava, por não quadrar com a amizade de longa data), ele tinha as suas dúvidas. Não o dizia a ninguém, por falta de coragem. Era isso mesmo: ele eram tantos os episódios em que deixara falar mais alto a hipocrisia. Às vezes, temia que o sono fosse tomado de assalto por causa da repetitiva hipocrisia, uma avenida larga emoldurada no seu registo.
No vocabulário dos egrégios, a hipocrisia é detestável. Sinal de fraqueza. A tibieza dos fracos, autores das piores aleivosias em nome da ausente coragem. Costuma-se dizer que os que não têm coluna vertebral decaem na hipocrisia. Ele tinha as suas dúvidas. Concedia: talvez as dúvidas fossem auto motivadas: ele era o primeiro a reconhecer, em interiores exercícios de calibragem, que muitas vezes dera o flanco a decisões que não eram as aconselhadas pelos cânones da coragem. Ato contínuo, arcou com o ónus da hipocrisia. Algumas vezes, só ele soube de como fora hipócrita. Outras vezes, a hipocrisia ficou à vista de toda a gente. Estes eram os casos mais dilacerantes. Não era confortável suportar o venal propósito da hipocrisia aos olhos dos outros – mesmo que soubesse, ou pelo menos desconfiasse, que os outros não podiam exibir pergaminhos à prova de hipocrisia.
Em sua defesa, construía uma elaborada teia argumentativa. (Era quando dava conta das acertadas palavras da amiga, ao colocá-lo entre o escol dos instruídos...) Haveria sempre um jogo de circunstâncias a favor da indeclinável decisão que arrematava a hipocrisia. Ele não era como um colega de trabalho, lunático, provocador nato, senhor de uma bravura inaudita, quase fazendo de propósito para escolher as palavras mais desastradas (na visão do discurso que se exige, cada vez mais estéril e impassível, não se colocando no rodo das suscetibilidades feridas). Teve muitos dissabores, o outro. Era por isso que ele andava nos contrafortes do desleixo. Para ele, nada tinha importância, mesmo o que pudesse ser agravo das suas dores.
Aprendeu a ser a antítese deste homem. E se houvesse dúvidas sobre o que fazer, num certo momento mais delicado, os contratempos aflitivos do colega eram boa mnemónica – sobre o que não fazer. O outro tinha um enorme orgulho de si mesmo. Ele considerava coisa fátua. O orgulho não dá de comer a ninguém. Os manuais da diplomacia são muito úteis. Há quem os acuse de ensinarem hipocrisia em estado puro. Na dúvida, não hesitava: que fossem levados os passos pelo caminho da hipocrisia, desde que ficasse claro que do seu contrário podiam sobejar sobressaltos custosos.
A certa altura, nesta hermenêutica interior que demandava a legitimidade da hipocrisia, lembrou-se da polémica em que mergulhou o colega quando tentou flirtar com a consorte do chefe do departamento. Ele jurou a pés juntos que a senhora deu o flanco e ele se limitou a seguir as pistas lânguidas que ela deixava à sua passagem. Ninguém ficou convencido, porque ele era irremediavelmente provocador e lhe era conhecida a tendência para avaliar mal as situações com que se deparava. A senhora reportou o caso ao chefe do departamento, seu cônjuge, que fez um pé-de-vento tempestuoso e quis sanear o colega desleal. Não logrou os intentos. As semanas seguintes foram de paródia sem fim. O homem, em vez de se refugiar num pedido de desculpa, ainda veio alegar que a senhora ter-lhe-á dito que o chefe do departamento era um desastre nos carnais deveres conjugais (com pormenores de permeio que ficaram nos anais do risível). Safou-se desta por causa dos seus intelectuais pergaminhos. E porque o superior do chefe do departamento o tinha em boa conta, ao contrário da ideia que tinha do chefe do departamento.
Ao evocar este garrido episódio, aproveitou para, em sua defesa, ensaiar a redefinição do conceito nas costas de um eufemismo: não seria hipocrisia, era pragmatismo. O beneplácito das palavras consegue o impossível. Só não se sabe o que fica colado no avesso das palavras assim reinventadas.

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