5.6.18

Sob disfarce


Spiritualized, “Come Together”, in https://www.youtube.com/watch?v=j9G7n8DBpO8
É uma destas erupções vulcânicas, tão devastadora que não fica nada para contar para memória futura. Sirvam-se mnemónicas com o ornamento da matemática, só para ver se sobra um vestígio que sirva de memória futura. Admita-se que as vicissitudes próximas tendem a liquidar o compacto que é o tempo pretérito. 
Admita-se; mas não explica toda a bílis destilada por ocasião do verbete anelado por uma famosa escritora, que desacredita tudo o que pertença, de acordo com as convenções, ao lado belo que a existência tem para oferecer. Há um certo revisionismo que adeja na demissão das ventos favoráveis. Nem que sejam dilacerantes as dores causadas por um desapontamento recente, nem que ardam os pés de tanto chão crestado terem percorrido, passar a esponja pelo calendário mais recuado não apazigua as dores, nem é remédio que se ofereça para aplacar estes males que desassossegam. Dir-se-ia: desse modo, tem-se o tempo refém de um disfarce que é um ardil desonesto para aprisionar o passado no património do esquecimento. Por mais que se queira, e por vivaz que seja a bílis purulenta, não há forma de apagar o passado da ardósia onde se enquistou. 
Critério diferente é o do esquecimento. Pode ser um esquecimento seletivo, com o separar metódico que a mente consegue alcançar, quando assim quer. Ou pode ser um esquecimento tutelado pela distância dos acontecimentos, ou pela sua irrelevância. Nada disto quadra com o disfarce do tempo vivido sob os auspícios de uma desilusão pessoal. A escritora pode estar sob os efeitos da proteção das condoídas recordações que ainda estão frescas, dando-lhe forma de casulo, preceito exigível para prevenir possíveis contratempos como os que a colocaram de mal com o mundo, em possível véspera da convalescença que (admito, do posto de observador, e ungido por uma certa ingenuidade) será por ela própria desejada. Mas não pode colocar-se sob disfarce do tempo, como se nada dele se aproveitasse. Não acredito que a melancolia seja um estado estrutural, reiterado no fio condutor do tempo. 
A escritora afocinha, com a força toda, dentro de um cálice de onde bebe cicuta. Da cicuta que não a mata instantaneamente, como se dos seus maus fígados uma qualquer substância fosse administrada contra os venenos impropérios. A prazo, não conseguirá evitar os efeitos funestos da cicuta. Da cicuta que ela teima em preparar e a dar-se a si própria.
Dirão: as deceções combatem-se com uma fortaleza encorpada a tomar conta do corpo inteiro. Mas não deve ser o húmus que mata as sementeiras onde se avistam as centelhas belas, herdadas de outrora. Essas são inapagáveis. Até pelas contrariedades que possam tudo pôr em causa.

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