28.6.18

Cemitério dos prazeres?


Velvet Underground, “Pale Blue Eyes”, in https://www.youtube.com/watch?v=KisHhIRihMY
Quando soube que havia em Lisboa o Cemitério dos Prazeres, interroguei-me: como pode um lugar onde estão depositados restos mortais ter nome tão convidativo? Como pode alguém que celebre a vida como o maior dos festins dar este nome a um lugar a que pertencem os que já não podem dizer o mesmo da vida? Como pode um cemitério fazer uma alusão aos prazeres, se o que lá se encontram são os despojos de quem se finou – poder-se-á entender, portanto, que a morte é um prazer?
(Ou a escolha do nome virá, apenas, porque o lugar onde foi construído o cemitério se chama “Prazeres” – e, nesse caso, concluir-se-á dizendo: que infausta escolha para lugar do cemitério.)
Admito que a estranheza vem muito do medo da morte. Faz sentido discordar que se escolha semelhante toponímia para um cemitério. Ele há tantos nomes possíveis, tantas palavras a escolher dentro de um sempre rico léxico que pertence a qualquer idioma, por que se foi avocar a palavra “prazeres”, de conotação sempre positiva e hedonista, para representar o lugar onde repousam uns restos mortais? Porventura será mais confortável, para os que acreditam na existência de vida para além da morte física – da vida perene, pois então –, saber que o lugar onde seus restos mortais vão ser depositados evoca uma realidade hedonista. Dir-se-ia, para quadrar com esse pressuposto: nada melhor, para a eternidade que se representa no lugar físico onde são deitados os restos mortais de alguém, do que convencer que esse é um lugar onde se corporizam os prazeres. O prazer de, estando fisicamente morto, se saber de alma perenemente viva. Seria como no bilhar, quando se mete a bola às três tabelas: a morte não é um  lugar recomendável; mas, uma vez repostos os restos mortais num cemitério que se chama dos prazeres, teremos a certeza que atingimos, por fim, esse ideal lisérgico da vida eterna e plena de prazeres.
Ou então, a hermenêutica da toponímia podia levar a outra dimensão: se por prazeres se remete para aqueles que têm uma verificação no plano sensorial, e admitindo que a maioria dos habitantes de qualquer cemitério são mortais que atingiram a velhice, um nome assim escolhido para o cemitério retrata o lugar onde está deposta muito gente que já tinha perdido o rasto a esses prazeres. É uma antonomásia aplicada ao conhecimento terreno – uma forma de levar os mais curiosos a perceberem por que se atribuiu tal nome a um cemitério e, ato contínuo, caso não pertença ao seu conhecimento, a saberem o que é uma antonomásia.
Ou então, o cemitério chama-se “dos prazeres” porque se embebe numa leitura mais sombria da existência humana: considerando que a vida é uma passagem sacrificial que impõe à maioria dos viventes um desprazer, a morte é a redenção. E o lugar onde se alojam os defuntos, a entronização dos prazeres que foram vedados aos viventes na sua sacrificial passagem terrena (talvez, numa interpretação tangente ao mito islâmico da redenção dos mártires através da concessão de setenta virgens no céu). 
Lisboa parece pródiga na toponímia que exalta o alvoroço: há lá um lugar que se chama Desterro. E poder-se-ia perguntar: quem gostaria de morar no Desterro?

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