18.6.18

Um rosto à chuva


Massive Attack, “Dissolved Girl”, in https://www.youtube.com/watch?v=GAiceRuLX1I
Perdido do tempo, numa errância escolhida em metódica tentativa de recriação, o rosto sob a chuva contínua. Sem dar conta. Era como se não estivesse uma intempérie – ou como se o tempo tivesse ficado dentro de um parêntesis, à espera de um chamamento vertido pela chuva. O rosto assim exposto à chuva era a metáfora de um rosto (talvez de todo o resto) que precisava de ser lavado sob os auspícios da chuva heurística. 
As gotas de água escorriam pelo rosto, abundantemente. E nem assim se sentia incomodado, ou tentado a procurar refúgio. Não seria como o gato vadio, talvez apanhado a meio da chuva inesperada, que aguardava por vez debaixo de um carro para regressar ao covil onde era melhor a guarida contra a chuva destemperada. Estava nos antípodas do gato. Ele não era vadio (a linhagem era célere em desmenti-lo). E, sem medo da chuva, queria que o rosto ficasse alagado pela chuva que não cessava de cair. 
Com o corpo ensopado, prosseguiu a errância. Não tinha ideia para onde ia. Só queria estugar o passo e caminhar, caminhar a eito, em sintonia com a chuva noturna que tornara a cidade quase deserta. Pensava: como as pessoas têm medo da chuva. Protegem-se dela. Não querem ficar com a roupa molhada, desconfortáveis, a jeito de uma gripe inoportuna. 
(Ou talvez não fosse assim de todo: a crer nas conspirativas teorias dos bastiões do patronato, os trabalhadores são poltrões e não se esforçam no trabalho. Se tiverem a oportunidade de ficar em casa, desfalcando as fileiras do seu emprego, não hesitam. De vez em quando – prossegue a teoria – uma pequena mazela, curável com um par de dias de cama e com medicamentos a preceito, vem a calhar para oxigenar do ambiente e das exigências do trabalho. Ao interiorizar a argumentação do patronato, e ao ver como estavam quase ausentes as ruas naquela noite tempestuosa, deduziu que a teoria não colhe. De outro modo, ter-se-ia cruzado com mais gente de rosto como ele à chuva, ao mesmo tempo que teciam suas preces para uma gripe moderada os acometer depois do período de incubação.)
Mas não eram estas observações que importavam. A roupa, de tão molhada, deixava à sua passagem um rasto de água que se misturava com as abundantes poças alimentadas pela chuva contínua. Mas o rosto – e talvez todo o resto – sentia-se revigorado, como se toda a água caída do céu fosse um manancial de rejuvenescimento. Andou horas a fio nestes preparos, candidato a uma gripe descomunal. Até que, já madrugada ia alta e a chuva começava a dar os primeiros sinais de abrandamento, foi derrotado pelo cansaço. Sentia-se frio, desconfortável, ensopado até aos ossos. Mas reencontrado por dentro, mercê da chuva paradoxalmente bonançosa. A gripe que viesse à vontade.

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