13.6.18

O tiro errado


Eels, “Fresh Feeling”, in https://www.youtube.com/watch?v=rAePtI2LAvA
Pode um instante hipotecar o futuro, dissolvendo-o numa simples memória do que podia ter sido se não fosse o ato que tomou conta do instante. Um gatilho premido sem querer; ou o mesmo gatilho premido intencionalmente, na suspensão do tempo que não cauciona a lucidez. O projétil atravessa o espaço que medeia entre o revólver e a vítima, atravessando-o como se fosse possível ser em câmara lenta, ou como se o tempo quase se suspendesse durante o trajeto da bala. É possível que o verdugo reveja o futuro naqueles breves instantes que, por transitarem em câmara lenta, sabem a eternidade. É possível que a vítima seja assaltada por um paradoxal sentimento de quem está dividido entre o pânico de se saber alvejado numa fração de segundo e a demora, inerente à câmara lenta, que admite um breve rememorar da vida até àquele momento.
A bala é a intermediária. Um simples mensageiro. Esculpe o ar com a sua velocidade vertiginosa, letal, todavia atravessando em câmara lenta, muito lenta, o espaço entre os pontos A e B (respetivamente, o verdugo que dispara a arma e a sua vítima, intencional ou acidental). Se ao menos a bala pudesse estabelecer o feixe de sensações que invadem o verdugo e a vítima, talvez perdesse força, ganhasse vontade própria e se desviasse do lugar a que pertence a vítima – que deixaria de o ser. Talvez fosse um súbito golpe de vento a moldar a trajetória do projétil e o verdugo se safasse da prisão e a vítima pudesse ver o dia seguinte para contar a fortuna com que pôde contar. 
Ou então, o tiro é simplesmente errado porque não era para aquela vítima. Uma confusão de identidades, um acesso de loucura de quem tinha a arma na mão, um tiro meramente acidental, o que seja. Apanhando a meio da existência a vítima que não devia ter sido arrolada para aquela condição. O tiro é errado (outra hipótese), apenas porque as armas são uma das maiores provas de estultícia. Um arremedo de poder, exercido no exato momento em que a arma é exibida e amedronta quem está no ponto de mira, levando-o a fazer o que de outro modo não faria, sob a coação do estipêndio de uma bala mortífera trespassar o seu corpo. Um tiro é sempre errado (dirão os puristas, em benefício de causa:  a menos que seja em autodefesa), pois supõe que uma disputa se pode resolver sem a intermediação da razão, apenas com recurso à força bruta de uma bala.
O tiro é errado. Sempre errado. Até quando erra o alvo, no provavelmente não intencional desvio de rota que previne males maiores. Em assomo de ingenuidade, um desejo lírico para memória futura: oxalá todas as armas fossem confiscadas durante a noite, quando toda a gente está a dormir e ninguém dá conta de serem seus coldres assaltados. Oxalá se deixasse de falar de tiros errados – pois todos os tiros são, de uma maneira ou de outra, um erro. Oxalá se falasse, apenas, dos tiros desembainhados por Cupido. 

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