11.6.18

Quem quer ser demónio?


Nick Cave and the Bad Seeds, “Stagger Lee”, in https://www.youtube.com/watch?v=Nbe5RERDh4k
Mote: Fora a matemática, dois negativos não dão um positivo.
As cominações todas contra os demónios que se ajuramentam demónios nas veias ferventes das pessoas. Das pessoas ditas bondosas. Os barítonos dos sentidos não deviam admitir a entorse das coisas, e os demónios só teriam lugar como entidades ilegítimas. Não é o caso. Transitam nos mesmos lugares. Ora disfarçados, ora como se fossem agentes secretos a soldo de interesses inconfessáveis, com o fito de sussurrarem o mal aos ouvidos de pessoas imparciais, conjurando-as, alistando-as entre o escol de que fazem parte. 
Os demónios não têm sonos fáceis. Debatem-se com as consciências, o lado oculto que não conseguem vencer. Os demónios chamam demónio à consciência que intimida a maldade de que são fautores. Alguns demónios, procurando combater os interiores demónios, resistem ao sono. Intuem que uma íntima fração do chamamento para o oposto do que congeminam vegeta nos corredores insondáveis da consciência imprevista a que convencionaram chamar demónios. Pressentem que a insónia enfraquece os demónios que são a sua antítese: um demónio não tolera concorrência interior. Ainda está para saber se o exercício tem provimento. Numa espiral sem fim, o demónio que consome um demónio tem de prestar contas ao seu avesso. E assim sucessivamente. Até já ser possível jogar com as conotações, nem fazê-las corresponder a um dos múltiplos lados em que se representa a identidade. Em sucessivas camadas, numa luta que se terça com armas entrelaçadas, os demónios desfazem-se em palimpsestos de si mesmos.
Neste vale infecundo, ninguém sabe quem é quem. Podemos ter juízes que são sacripantas, meliantes transfigurados em sacerdotes, profetas de nada convocando-se para o estuário de rios sem foz, ascetas maravilhados com a fauna devastada, piras onde incensam pecados fora de prazo, pescadores que nunca viram o mar, orientadores de almas que não sabem gramática. Ninguém sabe se um demónio é demónio, ou se é um farsante, provocador irremediável, disfarçado de demónio só para ser olhado como detonador de terramotos que fazem tremer as ameias do estabelecido. 
No fervor deste caos, não há identidades consagradas. Não se sabe quem são os demónios. No improdutivo enigma, um demónio pode conseguir matar um demónio e, contra a sua vontade, purificar a alma que não busca redenção. Antes seja um lugar sem estribeiras, os olhares vertidos em aquários de água contaminada, pois as ambições não se medem em alqueires conhecidos. Nem um demónio, por matar um demónio, se contenta com a redenção que não pediu.

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