21.6.18

Quem quer subir no elevador social?


The The, “Uncertain Smile”, in https://www.youtube.com/watch?v=ynPadWk-1PI
Benedita nasceu em família humilde. Estudou, com a ajuda de bolsas e o mérito de ser aluna de exceção. Foi-se fazendo gente. A pulso. Começou a fazer carreira, outra vez escorada em bolsas e no desempenho que a colocava num escol. Benedita frequentava todos os anos a Festa do Avante. Era voluntária na montagem e no que fosse preciso para o certame ser o sucesso do costume. Benedita escreveu alguma prosa sobre desigualdades sociais. Sobre as tremendas iniquidades entre os que tudo têm e pouco fazem para terem mais ainda e os que vivem à míngua e vegetam nas camadas inferiores, muitas vezes caindo no alçapão da criminalidade. Alguma da prosa foi dedicada à correção das desigualdades. O que podia ser feito para que o elevador social fosse diligente e desse oportunidades para os que não têm nada, ou pouco, pudessem ambicionar um módico de dignidade. 
A Benedita era o paradigma do prodigioso elevador social. Se não fossem as suas capacidades e o esforço que com elas caldeou, de mãos dadas com as bolsas que foi vencendo, não teria saído da humilde condição que seria sua condenação de outro modo. O elevador social levou-a a certos estamentos que não conhecia. Os prazeres mundanos, a bitola aferindo-se por uma fasquia que ia crescendo com a sucessiva camada de hábitos consolidados, a habituação aos deleites do consumo, com concessões à burguesia de que se dizia detratora em palestras e escritos. Era o dilema do elevador social. Difícil era desprender-se de todas as suas consequências. Os hábitos burgueses passavam a ser irreprimíveis. Ao início, esses hábitos esbarravam com a doutrina. O tempo foi passando e os prazeres mundanos, e um certo estar burguês, foram sendo enquistados. 
Já sexagenária, a Benedita estava diante de um precipício – e não era uma tentativa de suicídio. Não sabia se continuava refém dos prazeres burgueses e acólita do elevador social, ou se insistia no catecismo que aprendera nova, nas reuniões dos coletivos. Ainda continuava a ir à Festa do Avante. Não falhou um só ano. Já não tinha frescura para ser voluntária. Mas mantinha-se fiel ao certame. Nessa semana, ocultava os vícios mundanos e as provas da capitulação à ordem burguesa, por contaminação do elevador social. O que não podia esconder era o sono controverso, sobressaltado, a divisão entre dois hemisférios milimetricamente divididos. 
Um dia alguém lhe lembrou, num colóquio, que em tempo houve um presidente da república que também se ufanava do muito humilde berço e de ter subido a pulso à boleia do elevador social. Só que nunca frequentou a Festa do Avante nem escondia a propensão por prazeres burgueses. E nunca escreveu uma página sobre desigualdades sociais. Benedita disse adeus à sexta década de vida a amaldiçoar o elevador social – e nos dias ímpares, a perguntar se uma mulher da sua igualha pode conviver com os malditos prazeres mundanos orquestrados pelo elevador social, ou se pode ser o esteio das ideias de que era cultora.

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