Flat Worms, “Pearl”, in https://www.youtube.com/watch?v=HA7AU95C_zU
- Fugimos da verdade. É a sina de que não podemos fugir.
- Como se afigura a impossibilidade de tutelarmos a verdade?
- Talvez pela sua indefinição. Se pegares num retrato e não consegues encontrar moldura a preceito...
- Nesse caso, o mal estará na incapacidade das molduras. Poderá não haverá uma que esteja a feição do retrato.
- E como pode um retrato sobreviver se não estiver ornamentado por uma moldura?
- O retrato pode dispensar moldura. São as coisas simples que reúnem um módico de subsistência.
- Parece-me que fica órfão, o retrato. Numa casa, quando as pessoas expõem fotografias, elas têm sempre uma moldura. Torna-se a ossatura do retrato.
- Nem tudo se resume a essa simplicidade. Pensa num quadro: se ele não tiver moldura, aparece descarnado aos olhos de quem o veja. Expõe-se em toda a sua imensa nudez. Não pode haver mais transparência, maior franqueza.
- Esse lampejo de transparência pode não passar de um ardil. Parece voyeurismoao contrário,voyeurismoporque quem se expõe em toda a sua transparência ambiciona a redenção. O exibicionismo disfarça outros padecimentos.
- E se for assim? Não é melhor a franqueza de descarnar até as coisas mais inconfessáveis, do que pretender ser apenas o fingimento de si mesmo?
- Esses arrependidos convolam-se por uma razão qualquer. Não é suficiente a transparência como ato de redenção. Precisamos de saber porquê, para a franqueza ser completa.
- Não posso concordar. Esse processo é maiêutico. Diz respeito a processos interiores que têm de ser alheios ao conhecimento exterior. O que importa é o fim do processo. A transparência que desagua no humilde descarnar de si mesmo.
- Possivelmente não passa de um limitado ato de resgate, como se houvesse a necessidade de limpar do espelho qualquer mácula herdada do passado. Não tenho a certeza que seja um ato inteiramente honesto.
- Entramos noutro domínio: como se pode captar, com rigor, a honestidade dos atos de outrem?
- Podemos ser nós a julgá-lo.
- Como? Quais são os artefactos à tua disposição para julgar os insondáveis meandros do interior dos outros quando eles exteriorizam um sinal que nos pretende convencer da sua honestidade?
- É um jogo de comparações. Entre atos e palavras. Compulsando, pelo meio, a confiança de que essa pessoa é credora.
- Esbarras num duplo problema. A começar pelo fim: os maus pergaminhos deixados pelo pretérito devem ser uma perene espada sobre a cabeça de uma pessoa? Não têm o direito a reclamar um crédito mínimo de redenção? Segundo – e insisto: como é possível ajuizar com total justiça a conformidade entre atos e palavras proferidos por outros? Admito que seja possível compará-los. E que, muitas vezes, as pessoas trazem às costas um mar de incongruências. Mesmo assim, nunca nos será dado a saber se essas incongruências não são propositadas, um jogo de espelhos que esconde diferentes camadas. Podemos querer parecer o contrário do que somos sem que isso seja uma desonestidade. Se a proteção contra o exterior o impuser...
- Segundo o teu argumento, não podemos julgar a honestidade dos outros?
- É uma empreitada insuperável.
- Termos em que podíamos concluir, desta nossa conversa, que a honestidade é indeterminável.
- Se a projetares sobre a individualidade que te é exterior, sim, é indeterminável. Não podemos viver por dentro dos outros. Só tens duas hipóteses: ou confias nos outros (em quem queres confiar), ou abdicas dos julgamentos a propósito da honestidade dos outros.
- Passamos a ser ilhas, desse modo. Desligados uns dos outros.
- Podes ver a questão nesses termos. O custo desta hipótese é menor do que a alternativa de ensaiar julgamentos sobre a honestidade dos outros.
- Resta-nos mergulhar sobre o interior de cada um de nós.
- Porventura. Com uma dificuldade em acréscimo: se decapares as sucessivas camadas do pensamento, podes chegar a um ponto em que interrogas a tua própria honestidade. A certa altura, o significado da palavra. No limite, a inteligibilidade do conceito. Dirás: não sobra nada, seremos cada um de nós rodeados por um deserto.
- Recuso-me a laborar nesse apocalipse. Que serventia teria sermos alguém se esse fosse o palco montado?
- A resposta cabe a cada um de nós. Só a cada um de nós.
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