20.6.18

Boca de leão


LCD Soundsystem, “All My Friends”, in https://www.youtube.com/watch?v=aygY5OqMuKE
Imensa, faminta, gulosa. Medonha: o leão entreabre a bocarra e das entranhas soergue-se um trovão. Não se assustem. É a voz do leão. E nem por ser tonitruante deve haver temor. Ou o leão não podia comunicar. Não tem culpa, o bicho, de ser uma avantajada criatura, o “rei da selva” (se nos quisermos socorrer de um lugar-comum). Abre a boca em câmara lenta para quadrar com a sua condição de poltrão. Poderá ser poltrão por ser o suserano da selva (porque não somos monárquicos, evite-se a palavra “rei”). Mas é medonha, a boca do leão, nem que por ele não se dê um alqueire de medo na exata medida da preguiça que o amordaça. 
(Tanta é a preguiça, que nas regras espontâneas que regem a condição social da espécie, são as leoas – com menos envergadura – que se dedicam à caça e ao sustento alimentar dos clãs.) 
Inspira respeito, a simples pose do leão. A juba é credencial que sela a credencial de suserano. Que seja perdoado o deslize que atenta contra a igualdade dos sexos, mas as leoas não confiscam tanto respeito como a pose imperial (descontando o deslize semântico) do leão. E quando abre a boca, com os dentes caninos proeminentes, em câmara lenta – ainda por cima –, o leão exibe toda a sua condição superior. Mas o leão, preguiçosamente suserano, fica deitado, à espera de ser servido, respondendo com o tonitruante esgaçar da boca.
Mas o leão deve ter cuidado se muito abrir a boca. De tanta amplitude se abrir, e desbocado aparecer, em vez do medo sobressai a fragilidade do leão. Enquanto preguiçosamente boceja, pode o inesperado entrar pela boca e alojar-se nas entranhas, condenando o leão à fraqueza. Altura em que o leão admitirá que a soberba e a condição de poltrão foram seus algozes, pois de temível animal transfigura-se num fantasma de si mesmo, recaído numa amostra do que foi. Pois é pela boca que também pode morrer o leão, afinal reduzido à sua frágil condição por ser vezeiro no superior estalão que transporta. 
Não fosse tão grande e medonha a boca do leão, fosse ele capaz de não ostentar a usura do altar que ocupa na hierarquia da fauna, e talvez a boca do leão não fosse um paradoxal retrato perante o qual não sabemos o que definir. E ainda há quem se ufane de muito a boca abrir.

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