8.1.19

Antes que Robert Mapplethorpe fosse embora


Mapplethorpe é daqueles artistas que, caso fosse vivo, não precisava de se promover. Os outros cuidam da função, sem que Mapplethorpe precise de mover um dedo. Tudo à custa da controvérsia da sua obra, com fotografias provocatórias que agitam muitas consciências, sobretudo porque a provocação é tangente ao sexo (ou a comportamentos sexuais que fogem do convencionado).  
Reduzir a obra de Mapplethorpe às fotografias com pénis eretos é uma injustiça. Quando a polémica surgiu, em parte alimentada pelo choque de consciências que algumas fotografias ousadas iam causar (e, noutra parte, pela colisão entre o curador do museu de Serralves e a presidente do conselho de administração), só se falava da obscenidade de algumas fotografias expostas. E, todavia, as fotografias mais belas escaparam à depuração dos críticos e dos outros que, à boleia de uma controvérsia em jeito de crónica de bons costumes, se esqueceram de as glosar (ou não as viram). São fotografias de flores, fotografias admiráveis que põem em alto relevo a quimera que é a morfologia destas flores. Em grande plano, sobressaem os filamentos que dimanam da origem, desdobrando-se em pétalas que desmaiam numa policromia mágica, numa constelação de cores que é um monumento vivo ao belo.
É incontestável que as fotografias de nus, com ou sem falos a adejar, são dominantes no acervo de Mapplethorpe. Mesmo aí os comentadores de ocasião, que peroraram sobre a agitação de consciências e o abastardamento dos bons costumes, falharam ao dar atenção apenas às fotografias que mexem com os padrões que ensinam a ter vergonha da nudez. Há fotografias monumentais de corpos nus, atléticos, com detalhes que mostram a observação metódica do fotógrafo, fotografias em poses coreografadas (e não se pode pressentir o ato artístico na conceptualização das coreografias que dão azo ao retratado?), rostos de artistas conhecidos que aceitaram posar para Mapplethorpe. E fotografias com movimentos cénicos que destacam a idiossincrasia do artista: a fotografia de um rosto quase totalmente imerso em água, apenas deixando o nariz e parte da boca à tona, tanto podendo ser interpretado como o resgate das águas assassinas, ou como o movimento decadente que aspira ao naufrágio; e a fotografia em que dois corpos entrapados se emaranham nas faixas que os cingem, pressagiando uma simbiose que tanto pode ser privilégio dos amantes, como (numa visão moderadamente otimista) da humanidade no seu todo.
Há as fotografias remetidas para uma sala reservada, com advertência às consciências sensíveis sobre o teor sexualmente explícito. Depois de toda a polémica servida quando a exposição foi inaugurada, fiquei defraudado. Muitos pénis, uns eretos e outros não, alguma parafernália sadomasoquista (quase sempre reduzida ao vestuário de couro dos modelos fotografados) e apenas duas fotografias explícitas: um punho metido no ânus de um homem e outro homem enfiando um dedo no óstio externo da uretra, como se estivesse a praticar em si mesmo a algaliação. Não fiquei defraudado da mesma maneira que os seguidores da CMTV precisam de sangue para se sentirem motivados para a vida, e ficam entristecidos porque a jura de sangue não foi cumprida. De tanto alarido feito com a exposição, depois de a ter visitado fiquei com a impressão que toda a vozearia pecou por excesso. (Ou, em interpretação alternativa, que muita gente continua afetada pelo sexo, ainda matéria pecaminosa para uns, ou matéria mal resolvida para outros.)
Há quem assegure que o propósito da arte de Mapplethorpe era ser provocatório, um agitador de consciências. Não conheço o suficiente da biografia de Mapplethorpe para saber se assim era. Independentemente desse juízo, lamento que a arte, quando imbrica com a nudez agitadora e com imagens de sexo explícito, seja abocanhada pela discussão moralista. Para a qual contribuem os que esbracejam os pergaminhos moralistas para a censurar, e os que abjuram essa hipersensibilidade e a atacam partindo de uma posição que se enfeuda num anticlericalismo visceral. Uns e outros consideram aspetos colaterais que desvalorizam a obra de arte enquanto tal. É essa a injustiça que se abate sobre a exposição de Mapplethorpe no museu de Serralves.

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