2.1.19

Estaleiro (short stories #86)


Shame, “One Rizla” (live on Later with Jools Holland), in https://www.youtube.com/watch?v=wkK5qTohwRc
          O cerimonial não quadra com o labirinto. Os andares a perder de vista, corredores exíguos, sobrepostos, um mosaico de cores sem cor; as paredes nuas, dando a entender que não têm limites, ou que as paredes, por indistintos limites seus, estão ausentes. Medra o estaleiro, a matéria bruta. O silêncio que se converte em idioma. E, contudo, é neste lugar que se ensaiam as ideias. É neste lugar que ocorre o tirocínio das palavras antes de elas serem ostentadas em solenes exibições, já no exterior do estaleiro. Os sintomáticos coros são o sacrifício menor que inquieta os atores: um murmúrio constante, as palavras não retidas por a elas se sobrepor o murmúrio. Passam horas a eito à procura das sílabas corretamente encadeadas, da entoação que pareça perfeita, sem haver lugar ao esquecimento. No estaleiro, antepõe-se um monástico arranjo da matéria ainda por desabotoar. Como é tudo matéria bruta, os botões estão no pesponto das casas do casaco, a ele unidos como se fossem matéria indistinta. Sabe-se que só depois de libertados os botões é possível atear a lucidez precisa para um lampejo sobre a inteligibilidade das coisas à volta. Ninguém é atirado aos leões sem lhe ser conferido o direito ao estaleiro. Manejam as armas que seja preciso terçar por quesitos de sobrevivência. As pessoas atropelam-se nos corredores mais apertados em suas loucas demandas pelo insondável. Ninguém intui maldade: é a báscula da sobrevivência que se arqueia sobre os instintos, a seiva que desconta a zero a pertença a um grupo. Vistos à distância, com uma visão do conjunto do estaleiro, os artífices são como abelhas em árdua empreitada para vingarem antes de serem retiradas do estaleiro e ficarem por sua conta. No alforge ornamentado a fazendas cruas e baratas, a sela do mundo espera-os. Espera que saibam ser artífices dentro do estaleiro para depois vingarem com sua marca indelével. Não há modo semelhante ao labiríntico estaleiro, que é a aprendizagem armada. Como se fosse a colmeia onde se adestram as abelhas antes de serem atiradas ao mundo em demanda do pólen. 

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