Mr. Herbert Quain, “Let Me Figure This”, in https://www.youtube.com/watch?v=jkO0aNZvTDk
Que o abismo não te emudeça. Pois o abismo é uma fábula da imaginação, sem correspondência com a matéria em que os corpos assentam. Continua com o olhar sagaz à procura da chave do tempo, das barreiras ao melífluo, do olhar compreensivo com a geografia em que se entretece o pensamento. Não descuides a crítica, por assanhada que seja; ao menos, é espírito crítico que medra na cumeada do pensamento, e não a apatia a que somos convidados, o moderno sucedâneo das ditaduras, das ditaduras que se sobrepõem ao pensamento descomprometido.
Nunca deixes que o olhar deixe de fazer o seu caminho. Sem agenda, sem ser tutelado por modas, não transigindo com a morfologia inerme dos que pressentem um apascentar oportuno da turba. Nunca deixes se não que o olhar veja o que lhe apetece. Pois é dessa liberdade que se compõe a grandeza do mundo, para a qual ofereces um modesto contributo através da grandeza que te é própria.
Não deixes que o olhar se hipoteque. Que sobre ele se vertam as cortinas baças. Ou que seja açambarcado pelo fardo pesado que é tácito ao coevo. O teu olhar tem de permanecer vívido, incisivo, construtivamente crítico, para depurar os vestígios em que não se reconhece e melhor saber o lugar a que pertences. Dá ao olhar o máximo do mundo que puderes recrutar. Dá-lhe páginas incontáveis, narrativas inesperadas, versos emoldurados para memória futura. E deixa que o olhar se congemine nas arcadas largas, onde os limites se fundem com os deslimites de ti.
Não deixes de atuar sobre o teu olhar. Estás numa posição paradoxal: é o olhar que te traz os testemunhos válidos, depois da decantação exigível; mas não sabes se o olhar cumpriu os requisitos da imparcialidade, não sabes se um olhar não totalmente descomprometido não contamina o teu pensar. És influenciada por ele e sobre ele tens de atuar, numa discreta e constante vigilância. Para o olhar não acabar tresmalhado num lugar exíguo, não frequentável, pútrido – o que, em muitos casos, pode corresponder aos lugares que te são dados a conhecer na maior parte do tempo.
Não deixes o olhar decair na indiferença. Não o deixes fugir para lugares domados por vultos, onde campeiam as desalmas. Não deixes que o olhar seja menos do que a voz nítida que desembacia as incertezas perenes. E não deixes que o olhar caia pelo precipício que é o lugar habitual de que somos residentes. Cumpre o teu olhar e inventa os lugares outros, verticais a estes a que os sentidos se emparelham. Para aprendermos a desenhar estrofes em conjunto.
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