14.1.19

Rádio sem pilhas (short stories #90)


Pond, “Daisy, in https://www.youtube.com/watch?v=Ap2gStsDZZo
          Sem veleidades: o rádio perdeu as pilhas. Ficou confinado ao silêncio. Esquadrinhou a casa toda à procura de um jogo de pilhas de substituição. Por mais que virasse as gavetas e as prateleiras do avesso, não havia pilhas. Não havia rádio. Sobrava o silêncio. Podia pegar num livro, que os havia, e muitos, empilhados nas prateleiras, e prontos para serem estreados. Dava-se o caso de não apetecer ler um livro. Ou ligar a televisão – que não precisava de pilhas –, ou sair de casa e ir às compras ao supermercado (para comprar um jogo de pilhas de substituição), ou outra qualquer coisa. A pura vontade era sintonizar o rádio. Quis recordar os tempos da infância e escolher uma estação em onda curta, daquelas em que o ruído de fundo se sobrepunha ao resto, tornando o resto quase ininteligível. Será que ainda havia onda curta? Não podia tirar as teimas. Especulou. Podia resolver a demanda se se vestisse a preceito (que o dia estava invernal e não convidava a sair) e fosse à loja mais próxima comprar um jogo de pilhas de substituição. Resignou-se a lutar contra a teimosia. Queria algo que não era possível, ausentes as pilhas de substituição. A curiosidade ficava para segundas núpcias – quando o mau tempo amainasse, ou quando dobrasse o persistente cabo da má vontade que o toldava e saísse de casa para comprar as pilhas necessárias. Ou se a vontade fosse calibrada e a teimosia se esquecesse da interpelação sobre a sobrevivência da onda curta. Ficou a olhar para o rádio. Um objeto inanimado. Não é que perca esse atributo quando, dotado de pilhas ainda a uso, debita as emissões captadas na onda média, na onda curta, ou na moderna frequência modulada. Sem pilhas, o rádio não tinha serventia. Enquanto estivesse sem pilhas. Enquanto a teimosia em não sair de casa fosse o obstáculo à vontade que parecia entronizada. Talvez não fosse. Sem admitir, tratava-se de um acesso de mau feitio, quando se martiriza a si próprio por causa das coisas que teve à sua mercê e, entretanto, as perdeu. Assim como assim, o rádio sem pilhas sempre era um objeto decorativo.

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