Não haja grande participação da grandeza interior, que os demais dispensam ufania tamanha. Mantenha-se o lugar comum: somos irrisórias parcelas que só contam nos formulários estatísticos como frios números sem nome. O sobrepovoamento do mundo retira autoridade à existência individual – e os gurus do moderno pensamento aproveitam para condenar o individualismo a um estado vegetativo, levando cada um ao despojamento de si e à entrega ao domínio dos grupos a que pertence. Desmistifiquemo-nos, que somos de uma imensa pequenez, procuradores de nada, armários diletantes que passeiam a sua vacuidade. Não têm serventia os cães de guarda, que não há tesouro para acautelar. Na paisagem onde somos, ninguém nos distingue. Subimos a palco e de nós só notam um espectro que se confunde com um vulto a soldo de uma serôdia intenção. Não chegamos a entrar na ficha técnica, amordaçados a um número que dissolve o nome num líquido sem paradeiro. Não contemos com a indulgência dos espelhos. Passamos por eles e não vemos nada; os espelhos são baços – ou os espelhos entram em serviços mínimos à nossa passagem. Desmistifiquemo-nos, em força, sem a custódia do medo. Não diremos qual é o caudal por onde deixamos vestígio. Esse é um rio que não vem no mapa. E, todavia, no incenso em que nos consumimos, a pele não acusa a vertigem da idade. Entesouramo-nos. Pelo menos assim julgamos. Que interessa que os olhos estejam cansados, ou que as lentes que sondam a pele estejam fora de prazo? Os mitos que são imagem de marca já só interessam a nós próprios. Como tal, deixaram de ter serventia. Quando nos desmistificarmos, ficamos só nós, a matéria decadente que acorda rejuvenescida pelo desprendimento das espadas que dantes esvoaçavam no ferimento das ilusões. Agora somos só nós, sem o estrénuo fautor das ilusões.
23.4.21
Desmistifiquemo-nos (short stories #317)
Zero 7 ft. Sia and Sophie Barker, “Destiny” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=fdIpY3vfNYI
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