5.4.21

O menino que ficava em frente do mar a contar ondas

Preoccupations, “Continental Shelf” (live at KCRW), in https://www.youtube.com/watch?v=M8kN4HIgZR8

O menino não tinha horas. O mar estava sempre à sua espera. A desenhar ondas sucessivas que enfeitiçavam o menino. Ele contava as ondas do mar. No inventário das ondas, ele inventou um vocabulário que narrava as ondas que chegavam aos seus olhos. De cabeça, sem mnésicas nem um compêndio que fosse da autoria de outros. Contava as ondas e registava mentalmente a contabilidade. No dia seguinte, o menino estava pacientemente à espera das ondas.

O menino não tinha reservas mentais em relação à terra. Mas virava-lhe as costas. O seu habitat era o mar que vinha ao encontro do olhar. Era como se tivesse identidade com as criaturas que habitam as funduras escondidas do mar. Era como se partilhasse com os náufragos as lágrimas que se esbatiam no seu rosto em forma de gotas trazidas pelo vento na sobra das ondas despedaçadas contra os penedos.

O menino já se sentia o procurador do mar. Sem ser o lugar feérico onde sobressaem os gurus da ecologia, que se servem do mar como instrumento de uma causa. O menino não sabia nada sobre política e outras coisas mundanas. Ele preferia apurar o sentimento do mar. Que era variável. Havia as marés, os diferentes estados de tempo, os ventos, a diabrura do dia que casava com os ventos de norte que despenteavam o mar e a serenidade da noite que silenciava as suas ondas. Tudo isto era anotado mentalmente pelo menino. Até que tivesse espaço para um livro com ilustrações vivas que fossem a fala do menino.

O menino só não conseguiu anotar mentalmente o número de dias consecutivos em que foi para a orla do mar contar as ondas por ele faladas. Foram muitos dias seguidos de conversa entre o mar e o menino. Um certo dia, o lugar escarpado não teve a visita do menino. O mar sublevou-se e, contam os jornais, foi a pior tempestade que aquele lugar guardou em memória. Dizem que o menino adoeceu e, desde o seu leito terminal, não deixou de contar as ondas do mar. Em telepatia com o mar, o menino teve o seu estertor.

Na sua lápide, alguém mandou esculpir um epitáfio: “aqui jaz o menino que contava as ondas do mar. Hoje pertence ao mar.” Nos registos do cemitério não consta o nome de quem mandou gravar o epitáfio. Os locais desconfiam que foi o mar.

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