9.4.21

O hespanhol fingido (short stories #310)

Os Resentidos, “Galicia Canibal”, in https://www.youtube.com/watch?v=BPcHD4JxEU4

          Olé! Era assim que cumprimentava as pessoas. Mantinha o sotaque musicado, identificativo dos andaluzes. Gostava de tourada. Dizia que gostava de tourada, mas fechava os olhos de cada vez que o toureiro, em sua bravura fingida, desferia a estocada no touro indefeso. Pimentos de Padrón, chipirones, horchata de Valência, paella, pulpo a la feria, tortilha, parrillada e batatas bravas, sangria e chuletón de carne rubia maturada eram presenças frequentes na ementa. Odiava catalães (só os que insistissem na independência da Catalunha). Fazia questão em almoçar às três da tarde e em jantar perto das onze da noite, o que muitas vezes o colocava em tardia posição quando queria amesendar num restaurante. Vibrava com o Real Madrid e tinha camisolas oficiais que envergava em dia de jogo. Gostava de citar Camilo José Cela, Javier Marias e o inevitável Cervantes (os clássicos ficam sempre bem na galeria dos orgulhos próprios). Se viesse a casar e tivesse filhos, ela seria Conchita e ele Manolo. Era monárquico e tinha uma devoção quase religiosa pela casa real dos Bourbon. No quarto, sobre a cabeceira da cama, uma bandeira espanhola servia de mnemónica. Gostava de ter nascido em Sevilha, mas nasceu no Barreiro. A primeira vez que foi a Espanha tinha vinte e três anos, depois concluída a licenciatura em Estudos Hispânicos. Na família, ninguém tinha antepassados espanhóis. Ninguém sabia explicar por que se fazia passar por um espanhol fingido. Por isso, chamavam-lhe o hespanhol e acentuavam o “h”, como os ingleses fazem quando pronunciam (por exemplo) “her”. Abespinhava-se quando perguntavam pela portugalidade que devia ser a sua identidade: “uma pessoa é o que se sente, não é as algemas que lhe põem no lugar da nascença”. Se lhe pedissem, era capaz de invocar a veia poética para escrever um poema para o hino de Espanha.

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