- Por que tens os dedos tão amarelos, avô?
O avô, descentrado do mundo limítrofe, cantava trovas às moças de outrora. Avocava o passado de conquistador, na altura em que deixava um rasto de charme pelos bailes vespertinos. O homem era apreciado e não se fazia rogado. Dizem as más línguas (e as boas também) que perdeu a conta das donzelas que o deixaram de ser por sua causa.
Indiferente à neta, o avô fazia de conta que não era octogenário. “Não há nada como manter o espírito fresco”, dizia todos os dias para que os poros e as mais fundas entranhas o pudessem escutar. O corpo já não respondia como dantes. Custos do cansaço que toma conta do corpo. A máquina – “o corpo, os corpos, são máquinas, sempre máquinas, e respondem maquinalmente” – desgasta-se, vai ficando mais próxima da decadência. O avô sabia que se o processo decadente se contaminasse ao espírito, o corpo envelhecia mais depressa. Por isso, avivava a memória. Não havia um único dia sem avivar a memória, de lá trazendo os fragmentos que evocavam as proezas físicas.
- Não me respondes, avô? Diz-me por que tens os dedos tão amarelos? Estás doente do fígado?
O raio da neta não o largava do pé. Depois de entrar na universidade para cursar medicina tomou conta da sua saúde, como se fosse a sua médica de família. Ele sentia-se mais como uma cobaia à mercê da neta. Quem lhe mandou dizer que ela era a sua neta preferida? Mas isso foi quando a rapariga tinha cinco anos e ele só fora avô uma vez. Temia que os seus pergaminhos avoengos empalidecessem se começasse a ser brusco com a neta mais velha. De tanto insistir na causa dos dedos amarelecidos, enfim acedeu à demanda:
- O fígado recomenda-se, minha querida. O teu avô sempre teve uma vida regrada.
O velho disfarçou a origem do amarelo nos dedos ao invocar a vida regrada. Não fosse pelo tabaco que ainda consumia avidamente (contra o conselho dos médicos e da neta que se fazia passar por médica de família – e dele próprio, que já fizera, ao deitar, tantas juras que deixaria de fumar), os hábitos eram regrados.
- Se não é do fígado, o amarelecido dos dedos é do quê?
Sem se deter numa pequena-grande mentira (a mitomania era um mal necessário quando alguém invadia o perímetro de segurança do velho homem), atirou com maus modos:
- Fui apicultor muitos anos. Tive de mexer todos os dias no pólen das flores. Daí os dedos amarelos.
A neta, muito letrada (ou não cursasse medicina, que, é sabido, é uma coutada dos mais letrados), não foi de modas:
- Queres ver que as flores polinizadas pelas abelhas têm nicotina...
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